sexta-feira, 31 de maio de 2013



Por obra do destino,
Não aguenta bebida
Nem a bebida o aguenta,
Que mal a bebida assenta
Jorra faringe afora em desatino:

Tem a alma vil, mas o corpo é tímido.
Graças a Deus.









(Publicado no livro "Coletânea de poemas",  III Prêmio de Literatura,  Editora Edufes, Espírito Santo, 2016)                   

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Do que se entende e não se entende nunca


I.

Conquistar consiste em convencer alguém. Conquistar amorosamente alguém significa convencê-la de que você é repleto de qualidades que trarão felicidade e bem-estar, convencendo o querer do outro, o amor do outro, como preferir chamar. Na melhor das hipóteses, você faz uso de suas qualidades reais, contudo qualidades que muitas vezes não são frequentes, cotidianas, são características nobres que precisam ser lembradas, que exigem certo esforço, ao redor de outras não tão nobres assim, e que nos aparece sem esforço... Logo, para conquistar é necessária certa atenção nos detalhes, certos cálculos, observações, astúcias, certa manipulação de si próprio, até mais do que do outro, pois realmente acreditamos na presença substancial das características eleitas para virem á tona e. Convencemos o outro, de braços abertos os dois, você e ele, convencidos e convencionados! A última maravilha, a perfeição, a união, o amor, enfim o encontro, enfim!
Com o outro e você devidamente convencidos e conquistados a ambos – nível concluído – passa-se o tempo, não anos, pouco tempo, e depois de tanto planejamento para conseguir o que se queria e ter conseguido, crente de que o outro te aceita assim como você é, à primeira ação de sentir-se à vontade : bomba! Escapa por entre as mãos algo que você não queria mostrar ao companheiro, que descuidado, que distraído que você é...  Tensiona-se novamente, ao olhar de estranhamento do outro, mantendo o equilíbrio do bem-estar. Mas depois de um tempo lá vai você de novo, tranquilo, deixando escapar as suas qualidades cotidianas, frequentes, naturais, não tão queridas – enquanto as características nobres de propaganda para o romance são esmorecidas... E você enganado, também, pergunta-se: onde está aquela pessoa que me compreendia e me aceitava? Está tão mudado!
E ao mesmo tempo o outro pergunta-se onde estão as qualidades que foram ofertadas, demonstradas como naturais? E conclui: não era isso que eu queria, por favor, volte a ser o que era antes, quero que seja como era antes, nos amávamos tanto, tudo era tão bom... E agarra-se a isso, a essa esperança projetada, com todas as forças. E você também agarrando-se ao que era antes, tenta refletir novamente aquelas qualidades que exigem tanto esforço e esmero, quase que vive tentando entrar no molde de sua própria criação, entrando no eterno labirinto de frustrações. Desejando do fundo do coração o desejo que o outro te ame como você é, não sendo como você é. E o outro esperando que você seja o que é, não sendo o que é. A roda das frustrações. Quem mandou me convencer? Tu és eternamente responsável por quem cativas, já ouviu falar disso?
A sedução compulsória torna-se um desespero cego e incômodo, um eterno querer e não ter, uma inexistência, uma retórica.  Torna o  amor uma invenção mental, ao invés de criação em relação, torna-se uma mentira, uma fraqueza, uma hipocrisia, impedindo descobertas verdadeiras em busca de causar  boas impressões. Seduzir é ignorar as tripas.
 Por isso desejo não convencer mais ninguém.  Cansa. Cansa demais ser interessante e agradável sempre. Para sempre. Porque afinal de contas não sou uma conquistadora barata, custa caro, não consigo ficar na superfície da carne, sem cair nas profundezas da existência humana e sensual, sem mastigar todos os dentes de leite do outro, sem mergulhar na existência, pois o corpo é o meio por onde se expressa o espírito. Cansa agradar sempre, esperar sempre, procurar sempre, suportar sempre, escutar sempre: apenas para convencer.  Ser um doce, adoçar, mole, insustentável. Há durezas, batalhas, silêncios esquecidos, que a excursão ao outro proporciona – mas que não faz mais efeito, não mais é feito, considerado, satisfeito, quase que não existe. Não se insiste mais, nem resiste. Deslumbra-se e depois desiste.


II.
O que existe é o sexo, tão sem sentido, coitado, posto que não é para sentir, é para mostrar(-se), para desempenhar(-se), para performar(-se) apenas: para assistir, sintetizar, concluir seguramente, sem percalços. E isso com a desculpa de deixar-se levar pela própria natureza (parte selvagem), e permitir-se o corpo expressar-se (oh, liberdade sexual) - o órgão genital expressar-se, querem dizer, o ego expressar-se, querem dizer, uma maluquice absurda: os animais (salvo raras exceções) unem-se para procriação, tendo no cio o desejo de perpetuação da espécie e nós, seres humanos, usamos camisinhas em defesa nada selvagem. Em defesa, a princípio, de gravidez e doenças indesejadas - seu significado literal-comercial,  no entanto, é também o signo-metáfora da possibilidade de relações sem riscos, triscos, uma busca pela abolição do medo, levando tudo à superficialidade segura, não apenas física, mas também emocional e humana, levando as relações à perda de camadas, facilitando e empobrecendo-as, inexistindo-as, frias, desconsideradas. E a liberdade sexual torna-se, na verdade, um libertar-se a si mesmo das relações sexuais, sensuais, dos sentidos, dos perigos que há na  iminência do outro.
Não quero-preciso explicar-me diante das doenças sexualmente transmissíveis, não há necessidade de lembrá-los disso: outros o fazem, e já foi esquecido faz tempo, o medo agora é outro. O látex nos convenceu que estamos seguros, e que as ações são ações sem consequências e sem esperanças. Ações puras, como  ações selvagens – ah, entendi.




domingo, 5 de maio de 2013

Diário de um cafajeste - Prefácio


        É de certa maneira reconfortante ser considerado um cafajeste –   importante deixar claro que ser considerado como um não implica necessariamente que o ser seja cafajeste na prática, mas o mais importante é saber que ser considerado dessa maneira incentiva a mudança de conduta, como mentira cem vezes contada. À primeira vista parece-nos ultrajante, ofensivo, nos envergonha a moral, nos classificando nos desclassifica, afinal, ao procurarmos o significado propriamente dito da palavra notamos que é de origem obscura: onde o próprio autor-nomeador não soube se deixou a nacionalidade de lado devido  ao moralismo que pede mistério ou à tamanha universalidade que pede dissolução.  Significando homem de ínfima ou ruim condição, desprezível e indigno de consideração social, notamos que tem uma vasta amplitude (um tanto o quanto subjetiva) de significados, aumentando a as chances que temos de uma hora pra outra tornar-se um. 
Ser considerado assim por fim reconforta os erros, acredite, e ao contrário do que se esperava, finda a culpa, uma vez que adjetivar o sujeito o coloca numa situação irredutível  ligada à sua própria personalidade inegável, colocando a responsabilidade do sofrimento ou dano na própria vítima, que se deixou ser lesada como que propositalmente, assumindo amor ou jogo com o aparente cafajeste,  aparente pois quem é cafajeste mesmo não se deixa perceber (quiçá existe mesmo). Esses são os melhores. Ou piores, como preferir. Eu, estruturalmente não o sou, não nasci assim, nasci para a honestidade – logo, para a culpa, mas algumas mulheres foram me atormentando de desconfianças pelo caminho, acusando-me de ações das quais não aproveitava, talvez apenas em imaginação, que resolvi unir a forma ao conteúdo.