Às mudanças desembrulhadas em casa nova.
I.
Despeço-me de ti, tão logo, e de modo tão breve, que ao final da frase já terás esquecido de onde eu vim.
Despeço-me como alguém que sai para voltar no tempo em que esteve presente.
Despeço-me como alguém que sai para voltar no tempo em que esteve presente.
Despeço-me de ti, deixa, eu carrego sozinha as malas sem nós, estão quase vazias, cheias de efêmero.
Se muita coisa te pedi, toma de volta: despedi.
Se muita coisa te pedi, toma de volta: despedi.
Eu gostava de ver a tua aparência bonita, gostava de teus detalhes terrenos, além de toda luz, além de toda a luz eu ainda conseguia ver. Terrenas aparências é no que se pode crer, não é?
Recebi a sua calma, fiz-me copo de cristal, eu, este bonde sem motor na descida, fiz-me copo de cristal,
Disse-te isso ontem à noite, depois do acidente.
Eu, bonde partido, tu, copo de vidro embrulhado em jornais.
Despeço-me nesta literatura sem leitor, letra tranquila, livre e quase sem sabor,
Sim, eu sei que não me chamou de amor, nem eu te chamei, lembra-te,
Agora que tu exprimes também o que te falta ao ser leitor sem literatura e
Que não há jeito. Que não há. Que não.
Despeço-me sem jeito.
Despeço-me de ti, como quem se despe da infância, nua infanticida a dosar as próprias crenças,
Despeço-me rápida, meio despida, na sábia adolescência subversiva, no saber ser de carne a vida:
Nu estás tu, que te escondes, ser revolvido: acalma-te,
que não serás removido de ti,
Amor infantil querias tu, eu te deixo amor adulto -
Polido, sem aresta, contido.
Amor infantil querias tu, eu te deixo amor adulto -
Polido, sem aresta, contido.
Despeço e te digo que este íntimo amor, ao contrário do que parece ser, tem ínfimo peso,
Bolha de sabão no espírito, que ocupa todo o espaço apenas se não for antes ocupado.
Quase imaginário, desejando tocar a matéria, existir - bruto e ordinário - explodir
Como aquilo a que os noticiários chamam de acidente.
Bolha de sabão no espírito, que ocupa todo o espaço apenas se não for antes ocupado.
Quase imaginário, desejando tocar a matéria, existir - bruto e ordinário - explodir
Como aquilo a que os noticiários chamam de acidente.
Eu, bonde partido, tu copo de vidro embrulhado em mil jornais.
II.
II.
Nos jornais jamais serão notícias os segredos da alma, ali
não serão desembrulhados.
Não serão noticiadas as resoluções silenciosas do beijo, tampouco a cura comprimida no abraço, não serão noticiadas as vidas contidas sem
tal medicina, não serão noticiadas.
Não haverá manchete anunciando as sutilezas, as ações
fortuitas de natureza misteriosa, o que não se tem notícia, as folhas e mais
folhas infinitas de espaços em branco entre as palavras representativas do
cotidiano.
As fotografias do que se acredita não estarão em primeira
página dos jornais locais, a humanidade que nos une não se estampará nos jornais
internacionais, as ausências não estarão dispostas nos anúncios, aqueles que
cobram caro por palavras inteiras e deixam o dito pelo não dito.
As invencíveis guerras dentro de nós
aos jornais serão invisíveis, as invencíveis guerras dentro de nós não
descansarão nas revistarias, em consultórios de dentistas e nem em embrulhos para
a banca de peixes, não descansarão, mesmo sendo a todos insensíveis.
Nos jornais não serão noticiados os acidentes dos destinos,
aqueles sem tragédia, de pouco desatino, aqueles pequenos desvios do olhar,
aquele instante em que aos pés do repórter nasce sem violência uma flor.
Viverá em paz a flor sem fotografia, sem alarde, na sua
existência pura e acidental, na maravilha de ser um susto, um repente, uma
notícia indigente que no poema tem valor de acidente.
(Publicado no livro "Coletânea de poemas", III Prêmio de Literatura, Editora Edufes, Espírito Santo, 2016)