domingo, 28 de setembro de 2014

Os jornais




Às mudanças desembrulhadas em casa nova.  







I.


Despeço-me de ti, tão logo, e de modo tão breve, que ao final da frase já terás esquecido de onde eu vim.
Despeço-me como alguém que sai para voltar no tempo em que esteve presente.
Despeço-me de ti, deixa, eu carrego sozinha as malas sem nós, estão quase vazias, cheias de efêmero.
Se muita coisa te pedi, toma de volta: despedi.

Eu gostava de ver a tua aparência bonita, gostava de teus detalhes terrenos, além de toda luz, além de toda a luz eu ainda conseguia ver. Terrenas aparências é no que se pode crer, não é?
Recebi a sua calma, fiz-me copo de cristal, eu, este bonde sem motor na descida, fiz-me copo de cristal,
Disse-te isso ontem à noite, depois do acidente.
Eu, bonde partido, tu, copo de vidro embrulhado em jornais.

Despeço-me nesta literatura sem leitor, letra tranquila, livre e quase sem sabor,
Sim, eu sei que não me chamou de amor, nem eu te chamei, lembra-te,
Agora que tu exprimes também o que te falta ao ser leitor sem literatura e
Que não há jeito. Que não há. Que não.
Despeço-me sem jeito.

Despeço-me de ti, como quem se despe da infância, nua infanticida a dosar as próprias crenças,
Despeço-me rápida, meio despida, na sábia adolescência subversiva, no saber ser de carne a vida:
Nu estás tu, que te escondes, ser revolvido: acalma-te, que não serás removido de ti,
Amor infantil querias tu, eu te deixo amor adulto -
Polido, sem aresta, contido.

Despeço e te digo que este íntimo amor, ao contrário do que parece ser, tem ínfimo peso,
Bolha de sabão no espírito, que ocupa todo o espaço apenas se não for antes ocupado.
Quase imaginário, desejando tocar a matéria, existir - bruto e ordinário - explodir
Como aquilo a que os noticiários chamam de acidente.

Eu, bonde partido, tu copo de vidro embrulhado em mil jornais.




II.


Nos jornais jamais serão notícias os segredos da alma, ali não serão desembrulhados.

Não serão noticiadas as resoluções silenciosas do beijo, tampouco a cura comprimida no abraço, não serão noticiadas as vidas contidas sem tal medicina, não serão noticiadas.

Não haverá manchete anunciando as sutilezas, as ações fortuitas de natureza misteriosa, o que não se tem notícia, as folhas e mais folhas infinitas de espaços em branco entre as palavras representativas do cotidiano.

As fotografias do que se acredita não estarão em primeira página dos jornais locais, a humanidade que nos une não se estampará nos jornais internacionais, as ausências não estarão dispostas nos anúncios, aqueles que cobram caro por palavras inteiras e deixam o dito pelo não dito.

As invencíveis guerras dentro de nós aos jornais serão invisíveis, as invencíveis guerras dentro de nós não descansarão nas revistarias, em consultórios de dentistas e nem em embrulhos para a banca de peixes, não descansarão, mesmo sendo a todos insensíveis.

Nos jornais não serão noticiados os acidentes dos destinos, aqueles sem tragédia, de pouco desatino, aqueles pequenos desvios do olhar, aquele instante em que aos pés do repórter nasce sem violência uma flor.

Viverá em paz a flor sem fotografia, sem alarde, na sua existência pura e acidental, na maravilha de ser um susto, um repente, uma notícia indigente que no poema tem valor de acidente.










(Publicado no livro "Coletânea de poemas",  III Prêmio de Literatura,  Editora Edufes, Espírito Santo, 2016)                   


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Histórica







I.

A cidade de onde eu vim já não tem nomes comuns, nem significados triviais, meramente                    informativos,
Quiçá são poéticas ou metafóricas as suas partes, seus embates, seus excessos não mais excelsos.
A cidade de onde eu vim e suas partes já não me ocorrem como substantivos , como reconhecimento trivial e utilitário de quem é integrante.
Não habita mais a ordem de significação simples, nem a simbólica da invenção. Não a reconheço, nela re-conheço-me instante, passante.

Suas ruas são memórias, filmes biográficos onde encontro o que sou e o que não sou mais.
E não me soa bem dar nomes conhecidos às coisas que vejo, porque são elas que me nomeiam agora.
As ruas, avenidas, árvores, a sujeira no centro da cidade, o som cortante do metrô, as luzes artificiais, meramente existências comunicacionais neste texto
Não significam nada em geral, nem em universal,
Apenas me revelam meu próprio subtexto, contextos de esquina, bibliotecas de pequena vida e bares de tudo o que já passei, ser consumível de óculos escuros.

Sem construção eu passo diante das construções que me construíram:
Nos ruídos, sem retórica,
Nos faróis amarelos da memória

Eu passo.






II.

Eu passo, e o passado é um tanto.

Passo, à noite me entrego aos passos e desconheço
(À noite o que existe é sempre outro lugar, vertiginoso e espesso).

A passos pardos caminho e desapareço, aliviada, sem ninho
E, é nesse lugar, preciso, que a cidade de onde eu vim vem mostrar-me de onde eu vim:

No encontro com os moradores da cidade escura,
Na sombra da luz,
Na escuridão condutora da noite descoberta,
Nos verdadeiros faróis que não dormem, estou surpresa:

Tudo voltará ao seu lugar quando você perceber que já está em seu lugar 
- dizem os corifeus da Lua -

A noite a caminho do dia na noite caminha,
O dia a caminho da noite no dia caminha,
Num retorno à lei do eterno retorno
Retornar a casa é para despertar - não para adormecer.

Então a essa hora, e a hora é pouca,
Na cidade de onde eu vim já não há mais símbolos,
Há existência, uma incontinência de concreto
Onde os espíritos são duros e furam tal qual as balas do revólver, e são capazes de levar a tempos antigos, imemoriáveis, históricos, tubérculos, de sangue, pesado e carmim -

E nessa cidade velha eu paro, atenta, pedestre, na faixa branca da memória do que veio antes de mim.










(Publicado no livro "Coletânea de poemas",  III Prêmio de Literatura,  Editora Edufes, Espírito Santo, 2016)