sábado, 21 de março de 2015

Um caminho de cães



                                                                                                  É selvagem, sim, e merece estimação.





I.

 Chorava à noite por medo do escuro, quase chegando às lágrimas humanas. Aguçava os olhos para a visão noturna e, ensaiando previsões, latia, latia a não poder mais, uivando: ao pequeno cachorro impossível eram as palavras, as perguntas retóricas, as interrogações sobre o mistério, tal qual uma criança, canino, chorava e sem a ciência esperava.
Mal sabia ser eu objeto de mistério.
Ao acender da luz pulou em meu colo, rápido e certo, a me lamber a cara, me arranhar a vida e fincou-me seus olhos sem cerimônias:  olhos desesperados de perguntas que eu não poderia conceber e tampouco responder. Escandalizei-me. Escandalizei-me ao encontrar seus olhos animais, uns olhos de alma guardada, de alma bem cheia e tão bem guardada em sua cápsula gelatinosa, contendo uma certeza, única, quase sensata: as suas  perguntas ficariam para sempre sem resposta, selvagens, seguras.
  Essa noite não dormi, acompanhei o cachorro na escuridão.

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II.

Não bastava a escuridão, a penumbra da noite, o mistério natural: era imperioso que se apagasse o interruptor, que se escondesse a luz em óculos escuros e cortinas, que corresse fora os olhos, fechados, sem querer ver, nem ser visto: o jovem homem a esconder-se de sua alma, proclamando invicta a carne, a massa palpável da vida calculada e medida - mas forçando a própria força, desmedido.
Num segundo de sua distração, pulei em seu colo, rápida e certa, a lamber-lhe a cara e lhe arranhando a vida acendi a luz, pouca luz, e vi.  A sua reação foi como se fossem mil abajures, faróis, sol a pino, num grande susto sob holofotes do teatro, como se os seus óculos escuros estivessem perdidos no escuro.
Tal foi a minha surpresa ao encontrar os olhos daquele homem: seus olhos eram iguais ao do cachorro, eram cheios de perguntas, as perguntas gritavam, se expressando em microveias no canto das pálpebras. Eram iguais ou piores que o do cachorro, pois neles as perguntas batiam no vidro de seus olhos, mas ele fechava-os em cortinas de feltro – sua alma batia-lhe forte no coração que doía sem respostas, disfarçadamente selvagem.
O homem não chorou, mas ganiu com violência e proclamou que se apagasse a luz. Ele poderia ter perguntado, eu poderia ter respondido - animal da mesma espécie que sou, no entanto preferiu latir no escuro.

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III.

Seus aposentos eram claros e luminosos, de uma brancura reflexiva dos bons pensadores e das boas folhas de papel para desenho; a curiosidade lhe era natural e companheira suave desde outros tempos, desde os tempos incabíveis, e de uma maneira ou de outra ele ficava sabendo das coisas de espírito inteligível – farejava e buscava saber, tal qual cachorro que busca o osso que ele mesmo escondeu. Seus olhos escuros vertiam luz sobre as coisas, seus olhos, escuros em si, vertia luz sobre os segredos, tornavam maciços e existentes certos mistérios: buscando ossos, encontrava minérios.
Acender a luz sempre fora e seria insuficiente para os seus olhos, tais quais duas luas rebeldes, invariáveis e incansáveis a farejar, as luas negras de seus olhos recusavam-se à variação, à penumbra, queria ver agora e sempre, e que se refletisse sempre em seu peito marítimo o ouro do que é invisível. Não bastava abrir as janelas durante o dia, era preciso ir à praia e olhar nos olhos do Sol, saber o que há depois além da luz, mastigar o ouro, saber, saber, saber, dentes caninos a insistir, selvagem desrespeito ao descobrir, e descobria-os, e mesmo eles assim desnudos, continuava sem saber, um macete sem fim e que tontura: A natureza selvagem, imperdoável e discreta, não o deixaria antever as suas penumbras e embaçou-lhe a visão, míope, astigmático, nuvens a brincar de encobrir e descobrir a lua de seus olhos, embalados agora em mistério necessário e são. Ele chorou, inconformado.
Acender a luz era insuficiente aos seus olhos escuros de profundo interesse, e olhava-me de perto, querendo ver, de olhos encostados, lambia-me o rosto, a querer saber se eu era capaz de arranhar a sua vida, e lhe dar pequenas respostas: eu ia responder, mas não precisava, ele já estava descoberto e eu vestida - para a festa de mulher e homem: animais da mesma espécie descabida. Se tivéssemos rabo, abanaríamos, satisfeitos por um instante, aceitando temporários, a ausência de respostas.

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IV.

Não era bem assim, de todo discreto, escondido, secreto. Permitia-se ser visto se estivesse escuro, nem um minuto antes, nem um minuto depois do escuro, espaço contado da revelação, do filme fotográfico, de uma ideia. Permitia-se ser visto a quem quer que conseguisse enxergar no escuro, raios ultra, intra-violeta, luzes anil, índigo e vermelho um pouco. Quem quer que lhe arrancasse um sorriso, tal qual cão-guia dedicado, enxergaria no escuro para sempre. 

E para sempre, e no escuro, em festa profunda, os cães das ruas uivam às memórias do tempo em que já foram lobos livres na sabedoria.



V.

O cão sou eu, buscando, fiel, a profundidade dos ossos que me são destinados.


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