sexta-feira, 30 de junho de 2017

À beira

                  

Para Flavio Aoun





O meu tempo não era mais medido pelas horas - eu estava muito velha e as horas não me cabiam mais: o meu tempo era medido por goiaba caída, caída da grande árvore plantada em meu quintal - não que ela fosse realmente grande em tamanho, mas comportava um grande número de frutos inumeráveis, e isso era a sua grandiosidade. Temporal:

De manhã, quando vibrava no chão a primeira goiaba depois do despontar do sol, quando a primeira, corajosa e exemplar goiaba vibrava o chão, eu também voltava para a terra. Os meus olhos acordavam para a novidade e para a repetição, eu levantava-me da cama para espreitar, bem devagar - fingindo doer as juntas, pois se eu me apressasse chegaria mais rápido no último instante, e eu ainda queria brincar. Acordava e seguia em jejum até que caísse a próxima goiaba, e a próxima, e a outra... cada goiaba, uma tarefa, e assim eu colhia as horas certas, sendo a escolhida das horas. Eu sabia estar ganhando tempo para um dia ser atemporal.

Quando caía a segunda goiaba eu podia, enfim, tomar o meu café da manhã, sutil, não mais glutão, como era antigamente, e depois ficava à mesa, o ouvido preservado e atento, até que caísse a próxima fruta madura; e ficava pensando que se eu houvesse plantado outras árvores frutíferas, talvez tivesse mais tempo, mais opções de contratempo, talvez conseguisse dançar. Mas já era tarde. Era tarde, e nem havia trocado de roupa, pois a terceira goiaba demorava a cair, por isso eu ficava imóvel, à espera (enfim, disciplinada). Era assim, e sucessivamente, eu sabia a hora de realizar as tarefas na ordem. Houve dias em que eu tomei café e almocei ao mesmo tempo, tamanha era a abundância de frutas, que caíam em duplas, em trios: pois que cada dia o tempo era único, e dificilmente repetia, a minha única responsabilidade era viver uma vez mais, uma goiaba a mais na árvore da vida.

Assim era, e a todas as minhas poucas tarefas de velha coroca deviam ser (e eram) precedidas por uma goiaba caída, assim era a contagem do meu tempo: sonoro e aromático, como havia sido a minha vida. E não pensem vocês que eu era velha pouca, eu estava finda já - a aurora da minha velhice já era passado - eu estava gasta,  vivia de goiaba e teimosia, ninguém sabia, mas estando naquela altura da vida era preciso uma ideia fixa para não cair, e eu me escorava, gentilmente no tronco daquela árvore, eu estava à beira. Eu estava à beira e a sina continuava sendo a mesma: os jovens parentes não lidavam muito bem com o meu tempo, perdiam-no a procurar diagnósticos infrutíferos, perdiam-se a marcar consultas que eu jamais poderia comparecer, perdiam-me, e eu estava à beira.

Quem cuidava de mim com conhecimento era a minha neta mais nova, Larissa, a continuação, a flor de goiabeira, e a sua companhia era a própria primavera de esperança e perseverança, pois as flores são delicadas fisicamente, mas têm grande força interior para sobreviver quando dedicadas - sei que as plantas sofrem muito mais com as pragas na época da floração, e por isso a planta tem de ser forte para conseguir sustentar a leveza da flor. Depois de pensar isso, já não sabia se eu era a flor e Larissa a árvore, ou se eu era a árvore e Larissa a flor... Ela havia percebido a contagem das goiabas e respeitava pacientemente, muito perspicaz, ela havia percebido sem eu dizer uma palavra, e com 7 anos, cuidava de mim, fazia-me companhia algumas goiabas do dia, e eu morava em seu coração frondoso.

À tarde choviam as goiabas: eram as horas da pressa na Terra, da necessidade de resoluções rápidas, as horas sem perdão, as horas consequentes; à tarde choviam as goiabas, as adiadas, e era a hora da pressa na Terra, da necessidade de resoluções rápidas ainda para este dia, dos destinos traçados. À tarde choviam as goiabas - depois da tempestade viria o adubo e eu estaria moída, viva! À tarde choviam as goiabas, e grande era a minha desenvoltura em executar as tarefas no tempo certo, o tempo do céu, e eu memorizava esses momentos de rápida juventude em que eu gastava o restante das articulações. Ah, se eu pudesse dizer tudo que sabia, ah, se eu pudesse saber tudo que eu sabia, mas eu estando à beira não podia mais intervir diretamente no mundo, tanto que não podia escrever que tudo isso não será escrito, pois que escrevo pouco, doem-me os dedos e minhas mãos não podem acompanhar o ritmo do meu pensamento, a mesma sina de sempre, agora entendo. E pensando tudo isso, imagino, como um sonho louco, se alguém poderia acessar a isso que agora vivo e escrever. Que bom seria. Assim continuaria a viver, assim poderia viajar, desprender e alguém teria trabalho artístico. Que bom seria se alguém colhesse as informações que caem em minha cabeça, pois há tanta informação quanto há goiabas no mundo. Será possível? Não sei, mas se for possível, agradeço e lhe digo, colha as goiabas, seja do galho, seja do chão. Colha as goiabas com as próprias mãos. Deus lhe abençoe!


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Jamais saberiam que sempre ela sempre fora velha e que, finalmente , estava à vontade no corpo e feliz, agora que coincidia a forma e o conteúdo, que havia uma incrível desenvoltura em seu seu corpo de velha, e que aquele corpo a representava: enfim poderia ser! Muito velha, e ter a idade da pedra lascada, do fogo em seu interior, velha! E não dar satisfações; percebeu que, na verdade, jamais precisaria ter dado satisfações, que as pessoas sempre criariam, por elas mesmas, as definições que lhe convinham, eram criativas, e que a verdade não bastava, a verdade era simples demais. Todas as suspeitas já haviam sido levantadas ao longo desses anos todos, e por isso poderia fazer uso da sabedoria do segredo: o silêncio.

E no silêncio da noite ela sabia que era hora de dormir - não bastava anoitecer, era necessário que as goiabas cessassem de cair, que elas também silenciassem. Para dormir era necessário que as goiabas cessassem de cair: haviam as noites demoradas de dormir e outras que eram noites ainda quando claro (pela ordem sucessiva dos acontecimentos, três goiabas após o jantar); e quando o silêncio das goiabas acontecia ainda durante o dia era permitido fazer o que quiser, era o silêncio permissivo, a hora da liberdade e sonho, e podia ler, dançar, deitar e ficar acordada ou o que lhe desse na telha. Um dia, durante um grande silêncio permissivo resolveu plantar algumas sementes de goiaba, queria garantir a disciplina das gerações aproximadas, e durante algumas semanas ansiava pela permissão diária para poder cuidar das mudinhas, e quando não recebia permissão, Larissa (a flor) cuidava das plantinhas. E assim, como um presente de Deus, gradativamente, a cada semana era lhe concedido mais tempo silencioso para cuidar das plantas, essa era a sua obra, o tempo lhe era doce, e lhe ajudava a plantar, concedendo cada vez mais silêncio. Ela estava à beira, escorava-se na goiabeira, e os seus silêncios foram crescendo, as frutas demoradas, cada vez mais contadas até o seu tempo acabar numa tarde de Outono, de folhas livres.

A última goiaba rolou aos pés de Larrissa (a árvore), e Larissa comeu, aliviada.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Universo ou Anatomia da distância



Se nem os átomos se tocam,
quem dirá nós?




I.

Eu consigo vê-lo
mesmo enovelado
enrolado em si
mesmo 
inteiro velado
eu posso ver.

Você vive
em meus olhos
- eu consigo ver -
vivo em seus olhos
o universo particular.

Eu consigo ver à distância 
a distância 
entre as nossas partículas:
E quando te olho
reconheço ser
inteira a partida.

Você vive
meus olhos,
e eu vivo 
em seus olhos
um recomeço:

Feliz, reconheço que quando te olho me reconheço, mas
Triste, vejo as grandes distâncias entre você e eu,
E não se abraça uma ponte:
Se atravessa.



II.

É difícil enxergar de longe: 
As distâncias são imensas, os encontros demoram
e estou vendo tudo. É difícil enxergar de longe.
A ignorância não me refresca e os encontros demoram.

Quantas léguas de excesso e falta teremos que caminhar?



III.

Enfim, começo e fim, distante e próximo.
Mesmo diante da sombra da sua dúvida
Reconheço, vejo a luz e vejo o túnel:
Primeiro eu vejo a luz, depois o túnel,
Você vê primeiro o túnel, depois a luz.

Quando iremos nos encontrar?
No meio desse caminho
Onde há luz e escuridão a nos cegar?

Eu, que vivo a imersão, gostaria
de caminhar um pouco na sua construção,
aprender a viver.
Mas para isso você tem que conseguir sobreviver à imersão, peixe do universo, lama de estrela, e aguentar firme a convicção, cavar o próprio túnel, encontrar a luz. Não se perder na viagem ao interior. Saber voltar.

E eu saber ficar.

Você vê primeiro o túnel, depois a luz.
Eu vejo primeiro a luz, depois o túnel.

Eu consigo ver.
Quando iremos nos encontrar?








terça-feira, 13 de junho de 2017



Porque eu imagino, eu vivo.
Mas também,
Porque eu imagino, eu não vivo.


A saudade é astronômica.
O nosso encontro, microscópico.