Em tempos como esses em que vivemos, de grandes riscos invisíveis - em que se paga pra ver - há pequenas formas e algumas pequenas formas de sobreviver.
A primeira é se lembrar da morte todos os dias. Cautela para que ela não se sinta esquecida e tenha o trabalho de vir pedir satisfação: é lhe dar satisfação antes dela pedir. Demonstrando sua humildade, convivendo com a gravidade, agradecendo cada oportunidade, mostrando-se disposto, deixando a mestra passar. É fazer o que pode, seguindo o protocolo geral (o de ser igual e pequeno), passar álcool em gel, na dúvida obedecer, mostrar-se disposto, de um jeito ou de outro, respeitar o sinal, ser paciente (de um jeito ou de outro!). Mostrar-se disposto a viver, fazendo o que pode é o que se pode fazer.
A outra maneira, de conseguir viver um pouco mais é estar dentro do instante com a certeza de que se vive e de que o instante lhe vale, como se não fosse morrer ou como se morrer não fosse problema. Não carece de intenção: acontece e contempla. Parece mais com um não saber, beirando a ingenuidade, mas passando longe da ignorância, sabe? Estar plenamente dentro do instante com a certeza que se vive, e que o instante lhe vale, como se não fosse morrer ou como se morrer não fosse problema, ciente de eternidade, aproveita a colheita do instante ou esquece e vive o seu tempo! É quase uma forma meditativa de alegria. Eu incorro no erro de explicar demais. Mas assim também é um jeito de sobreviver, na multiplicação do instante e fé em seu aprofundamento.
Reparem que eu coloquei em ordem, mas uma coisa não exclui a outra, são maneiras de dar sustentação à vida nesses tempos em que se lembra que a morte existe (e que até parece que antes ninguém morria). Assim cheguei até aqui, viva, mas não intacta: demonstrando respeito a tudo que se vai, deixando ir, e indo deixando morrer as ilusões, uma atrás da outra, e enquanto não me mata, vai matando meus enganos, cognata, o pássaro da morte sobrevoa a cidade e aproveitando a sua passagem, vou aprendendo a deixar passar. Deixo cair sem vida iniquidades, pesos mortos aprendo a enterrar, observo a arte dos coveiros (fecha esse caixão), choro, aperto as flores contra o peito e entrego: deixo que cuidem do resto. Deixo uma flor.
Espero não ter demorado, se eu soubesse antes, antes eu teria contado...! Que possamos contar com a boa sorte de vivenciar a inteireza dos instantes.
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