sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Canto primaveril






Haviam algumas primaveras sem que ela enxergasse os flamboyants desabrochando em seu rosto, comia-lhe todos os botões como se fossem guloseimas, tinha fome de o quê. Ardia e não via as próprias pétalas caídas acariciando-lhe a pele e arrepiando-lhe ascendentes as cores quentes. Descendia o olhar às grandes folhas que lhe caíam sob o colo - grandes colares sob a grama intocável dos seios, e não havia meio.  Havia muitas primaveras sem que ela enxergasse-os, que boiavam sob a água dos seus olhos salgados, choradores de mar, causadores de tempestades, ondas replicadas infinitamente no caleidoscópio das estações,  boiavam-lhe as flores vermelhas e as castanhas caídas de um outro.

Ardia e não via até o sol bater-lhe na cara, rude, impaciente, tocante, incendiando-lhe sem permissão as formas alaranjadas nas paredes, e as castanhas de um outro sem casca rasgarem-lhe o chão e descascarem sua polpa doce e macia a fazê-la  vislumbrar a tal acidez rubra presente em seus flamboyants.  Despetala, roxa: cegando ao sol de primavera, ela, não mais verde: Estar verde é estar em paz, sabia de alguma maneira sabia, de alguma maneira sabia, sabia, sabia, sabia, você sabia que o sabiá sabia assobiar, distraiu-se. Cega de uma luz de sol a pino, explodia em cores já lavadas, límpidas, quase puras - pois algo que permite-se nomear jamais é puro – explodia em verão, em sementes nuas, frutíferas explodindo a terra, sugando minhocas para dentro do estômago, doces viajantes, ainda maleáveis. Ainda limpos. Ainda lineares. Dormiam sobre o peso e a maciez cruel das frutas maduras caídas - lembranças da efemeridade. Mamãos esmagados entre as coxas açucaravam-lhe as ideias, amoras tatuavam-lhe feridas que não eram sentidas, as uvas – incontáveis, insondáveis, escorregadias e gelatinosas amorteciam-lhe a língua e a queda. Sob o sol, fermentavam o possível.

Solares. E o sol queima sob o espelho gigante do desejo. Consciente agora, a esperar diariamente pela chuva, grandes torrentes a esfriar-lhe as correntes ferventes de um medo constante de outras estações. Estar verde é estar em paz, lembrou-se mais uma vez, naquele que poderia ser o momento último, e logo esqueceu, consciente de insolação que secava-lhe os nervos e molhava-lhe os olhos, túnicas de água salgada, que saudade do mar sentiu, já sem domínio.  Inunda-me, imunda-me antes que seque a argila de nossas mãos, pensava ela, num ímpeto de construção e beleza úmida.  Caía-lhe a chuva como uma luva. E como pesava, encharcada após a chuva como pesavam essas árvores, pensava ela, e chorava as folhas, outonais, milhares, num elogio à leveza: Amor cor de terra, suas folhas – samambaias aéreas - tem raízes, quem diria, no chão...  Amor cor de terra, comia-lhe marrom, roxa, laranja, vermelha, preta, seca de areia, comia-lhe inteiro, comia-me como o amor pela vida que tem a terra pela morte que abraça. Enterra-me. Viva. Ela, mais viva do que antes: planta-me, semente verdadeira, desejo extra-físico de existir.

E de insistir vivia, do repetir sobre a terra coberta de folhas, dorme seca acorda renovada de flores - crescia rápido seus humores - automático o corpo escolhe sua lógica. O corpo escolhe sua lógica, o corpo escolhe sua lógica, o corpo encolhe a lógica, intrínseco esquecimento dos raciocínios científicos de sobrevivência e defesa, ao arrastar crocante dos pedaços de folhas estralando os nervos todos, à base da loucura, relaxando as ordens vertebradas da desistência,  folhas caídas das grandes árvores a lembrar que não adianta raiz: Agarrados às cascas de cigarras sem as cigarras.  Sabem que a melancolia é o desejo de morrer sem perpetuar-se e não entregam-se, antes cavam buracos, apodressem adubos, vermes de nutrição, sabem que dentro das cascas que sobram há a assinatura da liberdade, da possibilidade, e insistem por fé no que é cíclico: agarrados às cascas de cigarras sem as cigarras.

Só quem é frio resiste, lhes diz a humanidade – de estranha humanidade, ao confundir força com agressividade, resistência com maldade. Só quem é frio resiste, dizem afirmar o vento que faz dançar as saias que não resistem. Quem é frio, não quem está frio, pois torna-se frio quem morre, diz o inverno frio por natureza a por a prova o verdadeiro calor, a chama que não se apaga, a força interior aos casacos e à lã.  E quando o calor não mais funciona à fricção e os mecanismos da natureza são colocados à prova, e ela descansa amarela num casulo, mole em suspensão paciente, observa o tempo. A dor sem doer neva, branca, guerra fria. Há tempo. Há sempre tempo, mas tempo é medida, o tempo é algum, é ação - eternidade é premonição e memória, imaginação. As estações não param – um dia param – mas ninguém saberá. Ela ainda não reparou nos pássaros, aqueles que devolvem as folhas às árvores e nos lembram de voltar à nossa própria raiz, de onde vêm nossas flores.


E o sol morre mais um dia 
Mais um dia o sol morre, e é lindo
Como é lindo o morrer.
E consequentemente o viver.
E o sol morre mais um dia.
De novo.
O sol que não morre cria sulcos na terra, 
fendas, rugas, marcas de passagem. 
O sol que morre também. 
Bom dia.

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