Haviam algumas primaveras sem que ela enxergasse os
flamboyants desabrochando em seu rosto, comia-lhe todos os botões como se
fossem guloseimas, tinha fome de o quê. Ardia e não via as próprias pétalas
caídas acariciando-lhe a pele e arrepiando-lhe ascendentes as cores quentes.
Descendia o olhar às grandes folhas que lhe caíam sob o colo - grandes colares
sob a grama intocável dos seios, e não havia meio. Havia muitas primaveras sem que ela
enxergasse-os, que boiavam sob a água dos seus olhos salgados, choradores de
mar, causadores de tempestades, ondas replicadas infinitamente no caleidoscópio
das estações, boiavam-lhe as flores
vermelhas e as castanhas caídas de um outro.
Ardia e não via até o sol bater-lhe na cara, rude,
impaciente, tocante, incendiando-lhe sem permissão as formas alaranjadas nas
paredes, e as castanhas de um outro sem casca rasgarem-lhe o chão e descascarem sua polpa doce e macia a fazê-la vislumbrar a tal acidez rubra presente em
seus flamboyants. Despetala, roxa:
cegando ao sol de primavera, ela, não mais verde: Estar verde é estar em paz, sabia de alguma maneira sabia,
de alguma maneira sabia, sabia, sabia, sabia, você sabia que o sabiá sabia
assobiar, distraiu-se. Cega de uma luz de sol a pino, explodia em cores já
lavadas, límpidas, quase puras - pois algo que permite-se nomear jamais é puro
– explodia em verão, em sementes nuas, frutíferas explodindo a terra, sugando
minhocas para dentro do estômago, doces viajantes, ainda maleáveis. Ainda
limpos. Ainda lineares. Dormiam sobre o peso e a maciez cruel das frutas
maduras caídas - lembranças da efemeridade. Mamãos esmagados entre as coxas
açucaravam-lhe as ideias, amoras tatuavam-lhe feridas que não eram sentidas, as
uvas – incontáveis, insondáveis, escorregadias e gelatinosas amorteciam-lhe a
língua e a queda. Sob o sol, fermentavam o possível.
Solares. E o sol queima sob o espelho gigante do desejo.
Consciente agora, a esperar diariamente pela chuva, grandes torrentes a
esfriar-lhe as correntes ferventes de um medo constante de outras estações.
Estar verde é estar em paz, lembrou-se mais uma vez, naquele que poderia ser o
momento último, e logo esqueceu, consciente de insolação que secava-lhe os
nervos e molhava-lhe os olhos, túnicas de água salgada, que saudade do mar
sentiu, já sem domínio. Inunda-me,
imunda-me antes que seque a argila de nossas mãos, pensava ela, num ímpeto de
construção e beleza úmida. Caía-lhe a
chuva como uma luva. E como pesava, encharcada após a chuva como pesavam essas
árvores, pensava ela, e chorava as folhas, outonais, milhares, num elogio à
leveza: Amor cor de terra, suas folhas – samambaias aéreas - tem raízes, quem
diria, no chão... Amor cor de terra,
comia-lhe marrom, roxa, laranja, vermelha, preta, seca de areia, comia-lhe
inteiro, comia-me como o amor pela vida que tem a terra pela morte que abraça.
Enterra-me. Viva. Ela, mais viva do que antes: planta-me, semente verdadeira,
desejo extra-físico de existir.
E de insistir vivia, do repetir sobre a terra coberta de
folhas, dorme seca acorda renovada de flores - crescia rápido seus humores -
automático o corpo escolhe sua lógica. O corpo escolhe sua lógica, o corpo
escolhe sua lógica, o corpo encolhe a lógica, intrínseco esquecimento dos
raciocínios científicos de sobrevivência e defesa, ao arrastar crocante dos
pedaços de folhas estralando os nervos todos, à base da loucura, relaxando as
ordens vertebradas da desistência, folhas caídas das grandes árvores a lembrar
que não adianta raiz: Agarrados às cascas de cigarras sem as cigarras. Sabem que a melancolia é o desejo de morrer
sem perpetuar-se e não entregam-se, antes cavam buracos, apodressem adubos,
vermes de nutrição, sabem que dentro das cascas que sobram há a assinatura da
liberdade, da possibilidade, e insistem por fé no que é cíclico: agarrados às
cascas de cigarras sem as cigarras.
Só quem é frio resiste, lhes diz a humanidade – de estranha
humanidade, ao confundir força com agressividade, resistência com maldade. Só
quem é frio resiste, dizem afirmar o vento que faz dançar as saias que não
resistem. Quem é frio, não quem está frio, pois torna-se frio quem
morre, diz o inverno frio por natureza a por a prova o verdadeiro calor, a
chama que não se apaga, a força interior aos casacos e à lã. E quando o calor não mais funciona à fricção e os mecanismos da natureza são colocados à prova, e ela descansa amarela num
casulo, mole em suspensão paciente, observa o tempo. A dor sem doer neva,
branca, guerra fria. Há tempo. Há sempre tempo, mas tempo é medida, o tempo é
algum, é ação - eternidade é premonição e memória, imaginação. As estações não
param – um dia param – mas ninguém saberá. Ela ainda não reparou nos pássaros, aqueles
que devolvem as folhas às árvores e nos lembram de voltar à nossa própria raiz,
de onde vêm nossas flores.
E o sol morre mais um
dia
Mais um dia o sol morre, e é lindo
Como é lindo o morrer.
E consequentemente o viver.
E o sol morre mais um dia.
E o sol morre mais um dia.
De novo.
O sol que não morre cria sulcos na terra,
fendas, rugas, marcas
de passagem.
O sol que morre também.
Bom dia.
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