terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Dislexia



A mulher era casada e não tinha marido.

O padre sofria de dislexia – sofria não, que ele nada sofria, quem sofria era ela que era casada e não tinha marido - o padre, à hora da cerimônia, em contato direto com Deus, em contrato irrevogável, sentenciou um equívoco, dizendo “Eu vos declaro, alarido e mulher”.

Deveriam ter se casado sem cerimônia, à hora do sim de qualquer hora, à justiça do sim, naquela hora tola, à hora de calor. Por um momento, diante das cerimônias do noivo ao propor cerimônia, duvidou do amor, será que o noivo não mais gostava dela, assim, tão franca e sem cerimônia? Franca ela era sim, mas não era gratuita, ele sabia que não era gratuita.. . Por pouco não se desentenderam, por pouco não confundiu o pedido com falta de confiança - mas ela era uma mulher sem cerimônias e por isso mesmo aceitou com leveza a proposta do noivo.

E, sim, no dia, sorriu, mas havia excesso de solenidade, a etiqueta colada às costas, o sorriso desenhado nos lábios. Havia de passar rápido, tomara deus, que a solenidade doía-lhe os pés e a impedia de ser completamente feliz.  Ela jurou! Jurou perante Deus e o diabo daquela gente que seria fiel, que seria fiel, que seria eterno, que seria de todo modo. E o padre, cerimonioso, em contato direto com Deus, mas disléxico, conclui para sempre a celebração, e disse: “Eu vos declaro, alarido e mulher.”

Fez-se presente o presságio, um segundo após a proclamação daquelas palavras:

Diante da confusão, todos aplaudiram, tentando evitar um constrangimento do padre e aplacar os risinhos, beijo do noivo, aplausos dos convidados, todos faziam vista grossa diante das palavras trocadas do padre, será que não percebiam, ela estava casada e sem marido, ninguém se importa? onde estavam as cerimônias de todos? Cerimoniosa, seus olhos buscaram o do noivo, pedindo socorro, calma meu amor, não tem problema, por favor, não cause constrangimentos justo agora, dá cá a mão, eu te amo, está tudo bem, todos querem nos cumprimentar, foi apenas um detalhe sem importância, pronto, tudo está feito, um beijo, você não está feliz, assim me magoa, venha comigo, vamos, pelo amor de Deus, não foi nada, olha a foto, sorria, dá cá um beijo, não seja tola, aqui estou, as pessoas vão reparar, não me envergonhe, se ajeita, olha pra mim, me ouve, não seja boba, é claro que eu sou seu marido, aqui estou, vamos cumprimentar os convidados, olha pra foto, eu te amo, não seja tola, todos já estão estranhando, o padre até se retirou, a sua mãe está chorando, veja só o que você está fazendo, minha filha, esse padre é assim, deus com certeza já concedeu o perdão e faz a devida correção no livro dos céus, não se preocupe, espera, não vai falar nada, não me envergonhe, por favor. Eu te amo, meu amor. Os convidados estão ansiosos por vocês, ouça, venha, limpe esse rosto, venha, é apenas um detalhe.

Alarido e mulher caminharam em direção à saída.



sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O monstro



Ao monstro não é dada outra maneira de existir:
Que delicadeza essa, a de não me deixar dormir.







Passei uma noite em claro, inteira, o sol atrás de mim,
E eu estava noite.  No silêncio, apenas o batuque,
Eu dançava parada, eu estava vida.
Os olhos abertos no escuro, coberta de fé no silêncio,
Deitada, meu coração era batida no colchão da Terra,
Viva, eu estava música, acordada.

Na calada da meia-noite, eu estava a pino,
E pude saber, aos poucos, e de um saber piano,
Do batuque intenso dentro do peito,
Do medo, do incansável segredo pude saber:
Monstros tocam o meu coração.

Tocam, mesmo sendo intocáveis as suas mãos:
Monstros são para serem deixados em paz - nós não.
Tocam meu coração, que vive, zabumba vibra
O irreversível da vida, vive sem perguntar se quer viver.

Tocadores de eternidade! Eu tenho medo! Tenho medo e coragem!
Façam-me viver! Músicos me batam, que sou toda coração,
E coração não vive só de delicadeza, é preciso pulso firme, a vida!
Palmada forte! O sim desfibrilador! 
Que susto: a aceitação.

Ao coração não se pergunta se quer viver: bate, indefinidamente,
Finito e definido som.
Ininterrupta batida na porta que não me deixa dormir,
Porta pesada, meu peito, pesadelo, luz piscada: quem está aí??

Mãos incansáveis tocando os corações
Enxerguei por um instante, improvável beleza, e quis falar
A você, exímio tocador, ninguém tocou?  
E quis tocar, mas disfarcei, para não atrapalhar
A música incansável de eternidade, a festa nos porões do medo da paz.

Calei, para continuar a viver.

Era noite, mas eu estava amanhecida,
Enruguei-me um pouco até saber:
Deve adiantar-se à escuridão para alcançar o dia.









domingo, 22 de janeiro de 2017

Agricultura


Longe do meu coração o amor parece selvagem, percebi, agarrada às ferramentas.



Perto dos corações selvagens meu amor é uma floresta: Incansável, floresta, longínqua, floresta, vívida, floresta - perigo e vida para além da civilização.  Mata rasgada pelo sol, réstias imensas, trilhas, beira transbordante, um abraço fértil. Longínqua, a que está longe, floresta, intangível, floresta, que vai longe, floresta, além da civilização, além - e não antes - que este amor é evolução. Perto dos corações selvagens meu amor é uma floresta, e estendo-me, incontável, para fora dos limites do cotidiano, fora dos limites do tempo, grande e invisível, fauna e flora transcendentes: sementes que emperram as engrenagens das máquinas, água de rio sobre os aparelhos elétricos, a pausa e o sangue no relógio de pulso - parece invenção, mas não é, olha a folhinha flutuando ali, incrível voo sobre o nada.
Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, sentido simbólico nos confins do espírito, floresta, velha, floresta, fresca, floresta – e posso encontrá-la na sombra de qualquer árvore, de qualquer país, mas nem sempre ela pode me encontrar. É outro tempo, não marca encontro, espera o sabor dos acontecimentos naturais, do sim, do que está certo, fincado no firmamento, a língua. É desafeito às particularidades das horas civis, é de impossível extinção e vasta memória, floresta: sem fim nem começo, alegria e tristeza do imperecível, eterna folha que impera sobre os machados: a pena.
Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, não é agricultura, latifúndio, medição e contagem: é floresta. Sistema que não se replanta, semente de terra caprichosa e certa, não cresce em solo empreendido sem o tempo, não nasce (nem morre) duas vezes no mesmo lugar. Vive entre o poder e a rebeldia, uma  existência que não aceita construção, engenharia - daí a solidão da noite, escura coragem da escuridão, onde hoje só existem o cio dos sons, memória dos  animais que nunca estiveram a sós, e a incerteza. Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, e não se vê nascer uma floresta, ela já estava lá, imediata.

Assim eu vivi por séculos e séculos, plantada por Deus no seio dos homens, bem como os homens plantados por Deus em meu seio. Até que eu sem bem saber por que, comecei a guardar as sementes, todas as sementes: sem saber por quê. E ao fazer algo novo sem saber o porquê, excitei sem querer a curiosidade do meu povo, que exercitou o medo, que se exercitou. Tive medo também e antes que pudessem me matar, escondi as sementes embaixo da terra o mais rápido que pude, ferida ferindo o chão com minhas mãos e pés,  de repente, sem saber e sem saber como, escondi sementes por todas as partes. Ao fazer algo sem saber por que, excitei sem querer o orgulho do meu povo, que se exercitou, e cegos de medo queimaram todas as árvores que eles sabiam conter sementes. Em mim não tocaram um só dedo, pois antes de tudo eu já estava morta, morta de medo, sem amor, sem floresta. Eu estava morta e pura, pura matéria e quase esquecimento.
Depois de anos de devastação, fome e arrependimento, em que eu estive morta de medo, a terra revelou seu segredo, e as corajosas sementes enterradas despontaram, mudas de solo e tudo veio à luz, visível! A ciência venceu o amor sem saber e sem saber o amor venceu a ciência, meu amor também é agricultura, atualizada nestes tempos, visível, demorada a crescer, mas visível. Oh! E tudo isso fez, de certo, fez meu espírito animado, agressiva a cultura,  e forte a agricultura: às ferramentas, ás máquinas... a partir daquele momento era preciso plantar, ter intenção, regar, optar, medir, planejar, ordenar, direcionar, preparar o solo, escolher entre um milhão de sementes, eu morava num mar sementes, e se responsabilizar, separar, construir, manejar, materializar, empreender e.  Longe do meu coração o amor parece selvagem, percebi, agarrada às ferramentas do escritório, e que toda aquela história estava arraigada em mim, e que mesmo eu sendo civil, por baixo de todos os disfarces, o meu amor é uma floresta, e ainda bem: perto dos corações eu sou selvagem.

Lembrei-me do que estava fazendo aqui, tão resoluta: Depois dos séculos sem perdão, depois de toda ausência, decidi me aproximar das cidades, entrar nos barcos, manusear as ferramentas, usar os talheres, seguir os calendários, toda aquela história está arraigada em mim, dirigir carros, guardar moedas, calçar os sapatos, dobrar os lençóis, ligar os refrigeradores, me assalariar, e todas as manhãs com carinho retiro a terra das minhas unhas, recolho as folhas, gravetos, fezes dos animais, carcaças, carapaças, cascas de árvores, cupins, dentes de tubarão que me escapam do corpo, faço a manutenção do invisível. Cuido a não chorar os mares, a não crescer como os morros, a não morrer, e por isso morro e cuidam de mim as formiguinhas, enquanto eu escrevo o relatório aos meus superiores e aprendo a aceitar.

Há tempo para tudo, me disse a árvore, uma árvore.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Portais







I.
Ele chegou, tocou a campainha, hesitado.
Pousou seu olho no olho mágico até desdobrar as fibras da porta e escutar:
- Ventre, por favor.




II.
A puta que pariu dormia.
- Descansa, é carnaval: eu vou no seu lugar. 




III.
Fui desposada pelo Mar:
Agora tenho marido
e não tenho onde pousar.



IV.
Pensei que te beijava,
mas era concreto.


V.
Na verdade, era uma flor.

Não quis ver despetalar a beleza...
(d)e virar fruto.







terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Atlântica






Cavando, cavou e encontrou as veias da Terra,
A profundeza, o sangue, o fogo, a água, a guerra.
Não ganhou a guerra, a guerra o ganhou e o condecorou:
Nobre guerreiro, você será imortal mesmo embaixo da terra.
Guerreando, guerreou! E assim foi o seu presente,
Dormir na caverna com ursos, beber das águas filtradas das estalactites,
Conversar com as batatas, abraçar as formigas, então pacífico!
Guerreando, guerreou, cavando, cavou-me, amor.

Todas as vezes que você voltar de lá, eu limparei o seu corpo,
Vou acarinhar o pó da sua pele, vou inspirar por você,
E vou soprar em seu ouvido a funda tradução, o sábio letrar.
Feliz, colho de tua pele o giz para os meus desenhos,
e te banho em mel e água de baleia, antes de existir baleias.
Te olharei: limpo, perfeito, genuíno, cadáver.

Te enterrarei novamente, chorarei despedida, folha seca, eternidade e tempo:

Cavei, cavei, e na terra reencontrei suas veias, geografia sertaneja, serra, pilão.
Eu não sabia, você ainda estava vivo, e no meio do caminho, a guerra!
Sem querer, querendo cravei a enxada no coração, você era a própria terra,
Plantei árvore torta, o teto virou chão, choveu terra no sertão, choveu em cima do mar de mim,
Caí do céu.

Chorai! Chovei!

Eu não sabia de nada.
Tu, que era tão árido, chorou os oceanos:  nada!
Eu não podia mais nadar, agora eu é que andava armada.
Guerreando, guerreei, e atlântica fui condecorada!
Por isso pude andar a pé no chão do oceano, e pedir:
Me conserva, me salga?

Sonhei e
Sonhando ser alga, me enterrei
No fundo das suas águas.