domingo, 22 de janeiro de 2017

Agricultura


Longe do meu coração o amor parece selvagem, percebi, agarrada às ferramentas.



Perto dos corações selvagens meu amor é uma floresta: Incansável, floresta, longínqua, floresta, vívida, floresta - perigo e vida para além da civilização.  Mata rasgada pelo sol, réstias imensas, trilhas, beira transbordante, um abraço fértil. Longínqua, a que está longe, floresta, intangível, floresta, que vai longe, floresta, além da civilização, além - e não antes - que este amor é evolução. Perto dos corações selvagens meu amor é uma floresta, e estendo-me, incontável, para fora dos limites do cotidiano, fora dos limites do tempo, grande e invisível, fauna e flora transcendentes: sementes que emperram as engrenagens das máquinas, água de rio sobre os aparelhos elétricos, a pausa e o sangue no relógio de pulso - parece invenção, mas não é, olha a folhinha flutuando ali, incrível voo sobre o nada.
Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, sentido simbólico nos confins do espírito, floresta, velha, floresta, fresca, floresta – e posso encontrá-la na sombra de qualquer árvore, de qualquer país, mas nem sempre ela pode me encontrar. É outro tempo, não marca encontro, espera o sabor dos acontecimentos naturais, do sim, do que está certo, fincado no firmamento, a língua. É desafeito às particularidades das horas civis, é de impossível extinção e vasta memória, floresta: sem fim nem começo, alegria e tristeza do imperecível, eterna folha que impera sobre os machados: a pena.
Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, não é agricultura, latifúndio, medição e contagem: é floresta. Sistema que não se replanta, semente de terra caprichosa e certa, não cresce em solo empreendido sem o tempo, não nasce (nem morre) duas vezes no mesmo lugar. Vive entre o poder e a rebeldia, uma  existência que não aceita construção, engenharia - daí a solidão da noite, escura coragem da escuridão, onde hoje só existem o cio dos sons, memória dos  animais que nunca estiveram a sós, e a incerteza. Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, e não se vê nascer uma floresta, ela já estava lá, imediata.

Assim eu vivi por séculos e séculos, plantada por Deus no seio dos homens, bem como os homens plantados por Deus em meu seio. Até que eu sem bem saber por que, comecei a guardar as sementes, todas as sementes: sem saber por quê. E ao fazer algo novo sem saber o porquê, excitei sem querer a curiosidade do meu povo, que exercitou o medo, que se exercitou. Tive medo também e antes que pudessem me matar, escondi as sementes embaixo da terra o mais rápido que pude, ferida ferindo o chão com minhas mãos e pés,  de repente, sem saber e sem saber como, escondi sementes por todas as partes. Ao fazer algo sem saber por que, excitei sem querer o orgulho do meu povo, que se exercitou, e cegos de medo queimaram todas as árvores que eles sabiam conter sementes. Em mim não tocaram um só dedo, pois antes de tudo eu já estava morta, morta de medo, sem amor, sem floresta. Eu estava morta e pura, pura matéria e quase esquecimento.
Depois de anos de devastação, fome e arrependimento, em que eu estive morta de medo, a terra revelou seu segredo, e as corajosas sementes enterradas despontaram, mudas de solo e tudo veio à luz, visível! A ciência venceu o amor sem saber e sem saber o amor venceu a ciência, meu amor também é agricultura, atualizada nestes tempos, visível, demorada a crescer, mas visível. Oh! E tudo isso fez, de certo, fez meu espírito animado, agressiva a cultura,  e forte a agricultura: às ferramentas, ás máquinas... a partir daquele momento era preciso plantar, ter intenção, regar, optar, medir, planejar, ordenar, direcionar, preparar o solo, escolher entre um milhão de sementes, eu morava num mar sementes, e se responsabilizar, separar, construir, manejar, materializar, empreender e.  Longe do meu coração o amor parece selvagem, percebi, agarrada às ferramentas do escritório, e que toda aquela história estava arraigada em mim, e que mesmo eu sendo civil, por baixo de todos os disfarces, o meu amor é uma floresta, e ainda bem: perto dos corações eu sou selvagem.

Lembrei-me do que estava fazendo aqui, tão resoluta: Depois dos séculos sem perdão, depois de toda ausência, decidi me aproximar das cidades, entrar nos barcos, manusear as ferramentas, usar os talheres, seguir os calendários, toda aquela história está arraigada em mim, dirigir carros, guardar moedas, calçar os sapatos, dobrar os lençóis, ligar os refrigeradores, me assalariar, e todas as manhãs com carinho retiro a terra das minhas unhas, recolho as folhas, gravetos, fezes dos animais, carcaças, carapaças, cascas de árvores, cupins, dentes de tubarão que me escapam do corpo, faço a manutenção do invisível. Cuido a não chorar os mares, a não crescer como os morros, a não morrer, e por isso morro e cuidam de mim as formiguinhas, enquanto eu escrevo o relatório aos meus superiores e aprendo a aceitar.

Há tempo para tudo, me disse a árvore, uma árvore.

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