segunda-feira, 30 de março de 2020

A morte das cerimônias





Eu caminho sobre muitos e muitos ossos, caminho sobre verdadeiros cemitérios, mas não tenho medo. A rua está repleta deles: é meu passado atrapalhando a passagem, é meu passado alavancando a passagem. A rua está repleta de cemitérios, ovos da memória, ossos: a bandidagem. Avisto, me visto e avanço: tudo veio à tona e não há lápides,  que aqui não existem mais cerimônias, mas mesmo assim não peso sobre eles, afasto os destroços, fartos. Afasto e ando entre os troços, meu peito é meu manto, respeito as traças, óleo nos olhos e passo no tapete da pureza. A rua está repleta de ossos e a minha história já não me assusta, observo a quebra das conservas. Imagino que não mais preciso me desfazer dos ossos, que já estão bem dispostos na terra, belos e livres, livros humanos, a quem quiser que leia. Lancei ao espaço! E agora passo, não mais os carrego. Cominho sobre os ossos! Dança das caveiras!  A rua está repleta, dançam as caveiras atrás de mim e a minha história já não me assusta, me carrega.

Lanço um olhar à leveza e é assim que dança também o meu esqueleto,
mas isso são coisas que não se veem... pois eu tenho carne.

Lanço-me ao espaço e vou!







segunda-feira, 23 de março de 2020


                                                                                                   
                                                                                                   Para José Reis, em memória.








Fui me despedir de você
e você não estava lá
(a caixa dentro da caixa).

Fui para me despedir de você,
quase todos estavam presentes,
luzes e flores enfeitavam o lugar
e não havia lugar para todos.

Alguns esperavam,
outros te esperavam ver
e você não estava lá,
a caixa dentro da caixa
(a casca dentro da caixa)

que indelicadeza chamar caixão

Não havia lugar para todos
mas todos estavam em seu lugar,
posto que você já não estava
lá, a casca só, dentro da caixa,
você do lado oposto.

Para onde havia ido, meu amigo?

Para onde havia que eu não via,
meu amigo? Por qual buraco havia saído?
Por qual via?

Admirei seu figurino bonito, o corpo da memória,
a verdade triste e velha na grande caixa de madeira nova.
Lembrei de suas andanças, seu bigode pretinho,
sua presença fina, aguentando firme as forças misteriosas,
lembrei do passado, e você já estava de presente aberto,
espírito livre, cantando outras paisagens.

Assim espero.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Em memória








O peso do pássaro morto pousou 
como uma pedra no chão,
e meu olhar era a sua lápide,
lépida que foi parada.

E tudo havia sido!

Eu que antes passava sem parar,
parte por partir, sem disfarçar olhei
a leveza no chão, consentida de tempo
e véu e fim dos confins!

Muitos dias lá eu passei, e deixei de passar,
de cabelos ao vento, os olhos no chão
daquele rebento que a morte deixou
ou levou.

Quando levantei os olhos e desde então,
quando lá eu passo o peso    .
daquele pássaro paira no ar.
(in memoriam)


E lá se vai.
E lá se foi!