terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Guerra




Não se mata a saudade:
A saudade é a última que morre.

-

No campo de batalha
Chorar as armas:
Tiros em cântaros de água,
Balas plantadas no peito,
O inimigo te mira,
E não te mata
Espera.








sábado, 3 de outubro de 2015

Estrangeirismos




I. 

A evolução só pode ser individual.
A revolução só pode ser astral.


II.

A paz é interior.
A guerra, anterior. 


III.

Antes de decidir, todos os caminhos são possíveis - e sabemos.
Quando decide-se o caminho, é revelada a única opção - e não sabemos.


IV.

A obediência à rebeldia pode ser uma missão.
A obediência à missão pode ser uma rebeldia.














quarta-feira, 16 de setembro de 2015



A solidão é a fresca,
a janela aberta dos silêncios,
a água que escorre fluida por entre as pedras - já não tão duras.

A solidão mudou de figura,
é a coruja tranquila que dorme de dia,
é o vôo do pássaro,
a alegria de estar íntegra em segredo,
a existência incontável
 num pedaço de tempo anônimo.

A solidão me deixa
caminhar nas ruas sem caminho,
arrepiar com o vento nas orelhas (do destino),
soprar a ferida, sangrar o espírito, agir.

A solidão me deixa
 alimento forte,
o sumo da verdade,
e pode ser
esta fruta fresca colhida no canteiro da multidão.



segunda-feira, 7 de setembro de 2015

                                                                               

Para Cristina Vivas


Amor és lo mismo en Portugues y en  Español (pero no és lo mismo).

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Poesia de pedra


Mexer na camada bruta das palavras, 
Lixar com vigor e esmerilhar,
Sem dó terrestre, escrever, e
Tal qual o tornado, tornar a dizer
Que resista,
Pois no olho do furacão tudo é silêncio, é paz.

A paz é um olhar.
E guerra nesta pacífica etimologia de pedra é sugerido cristal.

Escritor!
Pequeno furacão   de metáforas, varrendo os significados todos,
Desenhando na matéria bruta!... Substituição! Dúvidas
Girando em torno do significado primordial
-  que não será captado,
Apenas pressentido, apenas o impulso de encontrar e isso basta,
É pedra abastada.

Escrever é 
Retirar a bruta camada das palavras, descobrir a ficção na dura História
E ver que a partir do momento que nos comunicamos tudo torna-se ainda mais história,
Torna-se fina a camada da existência, fugaz, movediça e maior que nós.

Escrever é 
Viver na poeira de olhos bem abertos.



segunda-feira, 15 de junho de 2015





Existem momentos em que não se pode voltar atrás.

Existem estradas que somem atrás de nós no exato momento em que damos o passo à frente:
A partir daí não se pode desistir, ignorar, dormir sem princípios ou fingir-se de bobo diante do precipício: não.
Ao adentrar numa estrada dessas o retorno é impossível
- como é impassível a roupa do ontem que encolheu.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Apego




E se eu não me atasse a nada?
E se eu não me atasse a nada, e não fosse mais terra fértil ao sabor dos desertos da ânsia?
Abandonasse as intenções, as hastes da permanência, os aprendizados civis, a ciência, a vontade de raiz e também de transcendência?
Sobrava-me água a moldar-se ao sabor e forma dos recipientes ou sobrava-me a medida da fluição da vida?                                   

domingo, 10 de maio de 2015

Verão



O sol dos meus sonhos me banhava em suor:
Carregá-lo custava a minha própria água, a sede, um mar de sal,
a vida temperada em transformar o que se acredita em possível estrada
e os pés descalços no caminho quente do que é tangível antes da hora.

A mim a espera era corte de espada fina, paciência ígnea,
a trilha sem fim dos desejos: cachoeira brava.

(Mais uma vez, pedras, mais uma vez, pedras, mais uma vez, mais uma vez, barreiras, mais uma vez, hidrelétricas mais uma vez, mais uma vez, mais -
Os desejos congestionados nos desejos dos outros: resistiriam incactos?)

E o carro estacionou no calçadão.
Abri a porta. Desvencilhei-me das roupas, dos amigos, dos bens materiais, dos dons imateriais, dos medos, corri:
Corri para a praia sem perder tempo, mas caía na areia movediça dos destinos -       
Era a guerra. Passava por cima dos pés de feitos inconstantes, em alegria ridícula corria, bravia
Em corda bamba equilibrava, corajosa daquela imensidão: o mar chiava bravio ou via raio e trovão?

Parei, assustada, no meio do caminho,e na medida do risco de vida,  observei, parada:
A vida riscava horizontes verticais, profundos, de luzes longínquas, agitava as águas.

Na medida do risco de vida o sol dos meus sonhos ainda me banhava em suor,
Mas diante de toda a aquela imensidão, d’onde até o mar se curvava, eles eram um quase nada.


Choveu.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Poema de amor primeiro







Ao me despir das roupas,
do mundo, do corpo
fui despida além da carne
(estarrecida)
As paredes, descascadas.

Me despi da paixão.

Onde havia? Não havia? A paixão onde estava?
Gasta, vazou por debaixo da porta, sem sobras para esse dia.

Foi então que inteiramente nu e sem paixão
o silêncio do mundo reinou e
pude verificar as sutilezas da sua realidade,
pedaço por pedaço, canduras, sombreados, difíceis dobraduras
até encontrá-lo, amor.

O silêncio reinou e pude verificar
que nua e sem paixão é que se pode amar:
Sem segurar com as mãos, tocar.

terça-feira, 7 de abril de 2015



Marimbondos sobrevoam a poesia.

Marimbondos sobrevoam a poesia que espera
a ferroada imperdoável,
a ferida querida,
a morte,
a vida.

Arranca-lhe o ferrão,
e tem-se o estampido, o verso, a canção,
  e um marimbondo, moribundo, em suas mãos. 

sábado, 21 de março de 2015

Um caminho de cães



                                                                                                  É selvagem, sim, e merece estimação.





I.

 Chorava à noite por medo do escuro, quase chegando às lágrimas humanas. Aguçava os olhos para a visão noturna e, ensaiando previsões, latia, latia a não poder mais, uivando: ao pequeno cachorro impossível eram as palavras, as perguntas retóricas, as interrogações sobre o mistério, tal qual uma criança, canino, chorava e sem a ciência esperava.
Mal sabia ser eu objeto de mistério.
Ao acender da luz pulou em meu colo, rápido e certo, a me lamber a cara, me arranhar a vida e fincou-me seus olhos sem cerimônias:  olhos desesperados de perguntas que eu não poderia conceber e tampouco responder. Escandalizei-me. Escandalizei-me ao encontrar seus olhos animais, uns olhos de alma guardada, de alma bem cheia e tão bem guardada em sua cápsula gelatinosa, contendo uma certeza, única, quase sensata: as suas  perguntas ficariam para sempre sem resposta, selvagens, seguras.
  Essa noite não dormi, acompanhei o cachorro na escuridão.

                                                                          -
II.

Não bastava a escuridão, a penumbra da noite, o mistério natural: era imperioso que se apagasse o interruptor, que se escondesse a luz em óculos escuros e cortinas, que corresse fora os olhos, fechados, sem querer ver, nem ser visto: o jovem homem a esconder-se de sua alma, proclamando invicta a carne, a massa palpável da vida calculada e medida - mas forçando a própria força, desmedido.
Num segundo de sua distração, pulei em seu colo, rápida e certa, a lamber-lhe a cara e lhe arranhando a vida acendi a luz, pouca luz, e vi.  A sua reação foi como se fossem mil abajures, faróis, sol a pino, num grande susto sob holofotes do teatro, como se os seus óculos escuros estivessem perdidos no escuro.
Tal foi a minha surpresa ao encontrar os olhos daquele homem: seus olhos eram iguais ao do cachorro, eram cheios de perguntas, as perguntas gritavam, se expressando em microveias no canto das pálpebras. Eram iguais ou piores que o do cachorro, pois neles as perguntas batiam no vidro de seus olhos, mas ele fechava-os em cortinas de feltro – sua alma batia-lhe forte no coração que doía sem respostas, disfarçadamente selvagem.
O homem não chorou, mas ganiu com violência e proclamou que se apagasse a luz. Ele poderia ter perguntado, eu poderia ter respondido - animal da mesma espécie que sou, no entanto preferiu latir no escuro.

                                                                                -

III.

Seus aposentos eram claros e luminosos, de uma brancura reflexiva dos bons pensadores e das boas folhas de papel para desenho; a curiosidade lhe era natural e companheira suave desde outros tempos, desde os tempos incabíveis, e de uma maneira ou de outra ele ficava sabendo das coisas de espírito inteligível – farejava e buscava saber, tal qual cachorro que busca o osso que ele mesmo escondeu. Seus olhos escuros vertiam luz sobre as coisas, seus olhos, escuros em si, vertia luz sobre os segredos, tornavam maciços e existentes certos mistérios: buscando ossos, encontrava minérios.
Acender a luz sempre fora e seria insuficiente para os seus olhos, tais quais duas luas rebeldes, invariáveis e incansáveis a farejar, as luas negras de seus olhos recusavam-se à variação, à penumbra, queria ver agora e sempre, e que se refletisse sempre em seu peito marítimo o ouro do que é invisível. Não bastava abrir as janelas durante o dia, era preciso ir à praia e olhar nos olhos do Sol, saber o que há depois além da luz, mastigar o ouro, saber, saber, saber, dentes caninos a insistir, selvagem desrespeito ao descobrir, e descobria-os, e mesmo eles assim desnudos, continuava sem saber, um macete sem fim e que tontura: A natureza selvagem, imperdoável e discreta, não o deixaria antever as suas penumbras e embaçou-lhe a visão, míope, astigmático, nuvens a brincar de encobrir e descobrir a lua de seus olhos, embalados agora em mistério necessário e são. Ele chorou, inconformado.
Acender a luz era insuficiente aos seus olhos escuros de profundo interesse, e olhava-me de perto, querendo ver, de olhos encostados, lambia-me o rosto, a querer saber se eu era capaz de arranhar a sua vida, e lhe dar pequenas respostas: eu ia responder, mas não precisava, ele já estava descoberto e eu vestida - para a festa de mulher e homem: animais da mesma espécie descabida. Se tivéssemos rabo, abanaríamos, satisfeitos por um instante, aceitando temporários, a ausência de respostas.

                                                                                      -
IV.

Não era bem assim, de todo discreto, escondido, secreto. Permitia-se ser visto se estivesse escuro, nem um minuto antes, nem um minuto depois do escuro, espaço contado da revelação, do filme fotográfico, de uma ideia. Permitia-se ser visto a quem quer que conseguisse enxergar no escuro, raios ultra, intra-violeta, luzes anil, índigo e vermelho um pouco. Quem quer que lhe arrancasse um sorriso, tal qual cão-guia dedicado, enxergaria no escuro para sempre. 

E para sempre, e no escuro, em festa profunda, os cães das ruas uivam às memórias do tempo em que já foram lobos livres na sabedoria.



V.

O cão sou eu, buscando, fiel, a profundidade dos ossos que me são destinados.


sexta-feira, 13 de março de 2015

Notícias cegas




Notícias cegas.
ou
Cientistas e trabalhadores relatam opiniões alheias.
ou
Jornalista sensacionalista se deu mal: aprofundou-se. 

ou
A descoberta do gene gay dominante. 
ou
A dieta feminista.
ou
Retrato fiel da realidade sofre distorção.
ou
Estudantes fazem protesto violento contra a lei do mais forte.

ou
A democracia só funciona entre os inteligentes se eles forem poucos.
ou

Cães-guias entregam os jornais a qualquer preço.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Ousadia






Deus apresenta-me coisas inacreditáveis -
Aquelas quase sempre por um triz inexistentes ou desaparecidas:
Ingenuidades marginais, detalhes universais, a distorção,
A arte, a esperança, o espanto: o invisível tempo visível,
O desenho da escrita, a leitura imprescrita, a surpresa, a vida repetida!

Deus apresenta-me coisas tão inacreditáveis que eu, discreta, acredito.

E esse deus não é um olho vigilante que tudo julga e tudo vê, distante e puro,
Deus não me vê de cima, deus me olha nos olhos, é matéria dobrada -
E assim se pode ver aquém e além do óbvio.  


 










(Publicado no livro "Coletânea de poemas",  III Prêmio de Literatura,  Editora Edufes, Espírito Santo, 2016)