É selvagem, sim, e merece estimação.
I.
Chorava à noite por
medo do escuro, quase chegando às lágrimas humanas. Aguçava os
olhos para a visão noturna e, ensaiando previsões, latia, latia a não poder
mais, uivando: ao pequeno cachorro impossível eram as palavras, as perguntas
retóricas, as interrogações sobre o mistério, tal qual uma criança, canino,
chorava e sem a ciência esperava.
Mal sabia ser eu objeto de mistério.
Ao acender da luz pulou em meu colo, rápido e certo, a me
lamber a cara, me arranhar a vida e fincou-me seus olhos sem cerimônias: olhos
desesperados de perguntas que eu não poderia conceber e tampouco responder. Escandalizei-me. Escandalizei-me ao encontrar seus olhos animais, uns olhos de alma guardada, de alma bem cheia
e tão bem guardada em sua cápsula gelatinosa, contendo uma
certeza, única, quase sensata: as suas perguntas ficariam para sempre sem
resposta, selvagens, seguras.
Essa noite não dormi, acompanhei o cachorro na escuridão.
-
II.
Não bastava a escuridão, a penumbra da noite, o mistério
natural: era imperioso que se apagasse o interruptor, que se escondesse a luz
em óculos escuros e cortinas, que corresse fora os olhos, fechados, sem querer
ver, nem ser visto: o jovem homem a esconder-se de sua alma, proclamando invicta
a carne, a massa palpável da vida calculada e medida - mas forçando a própria
força, desmedido.
Num segundo de sua distração, pulei em seu colo, rápida e
certa, a lamber-lhe a cara e lhe arranhando a vida acendi a luz, pouca luz, e
vi. A sua reação foi como se fossem mil
abajures, faróis, sol a pino, num grande susto sob holofotes do teatro, como se
os seus óculos escuros estivessem perdidos no escuro.
Tal foi a minha surpresa ao encontrar os olhos daquele homem:
seus olhos eram iguais ao do cachorro, eram cheios de perguntas, as perguntas
gritavam, se expressando em microveias no canto das pálpebras. Eram iguais ou
piores que o do cachorro, pois neles as perguntas batiam no vidro de seus olhos,
mas ele fechava-os em cortinas de feltro – sua alma batia-lhe forte no coração
que doía sem respostas, disfarçadamente selvagem.
O homem não chorou, mas ganiu com violência e proclamou que
se apagasse a luz. Ele poderia ter perguntado, eu poderia ter respondido -
animal da mesma espécie que sou, no entanto preferiu latir no escuro.
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III.
Seus aposentos eram claros e luminosos, de uma brancura
reflexiva dos bons pensadores e das boas folhas de papel para desenho; a
curiosidade lhe era natural e companheira suave desde outros tempos, desde os
tempos incabíveis, e de uma maneira ou de outra ele ficava sabendo das coisas
de espírito inteligível – farejava e buscava saber, tal qual cachorro que busca
o osso que ele mesmo escondeu. Seus olhos escuros vertiam luz sobre as coisas,
seus olhos, escuros em si, vertia luz sobre os segredos, tornavam maciços e
existentes certos mistérios: buscando ossos, encontrava minérios.
Acender a luz sempre fora e seria insuficiente para os seus
olhos, tais quais duas luas rebeldes, invariáveis e incansáveis a farejar, as
luas negras de seus olhos recusavam-se à variação, à penumbra, queria ver agora
e sempre, e que se refletisse sempre em seu peito marítimo o ouro do que é invisível.
Não bastava abrir as janelas durante o dia, era preciso ir à praia e olhar nos
olhos do Sol, saber o que há depois além da luz, mastigar o ouro, saber, saber,
saber, dentes caninos a insistir, selvagem desrespeito ao descobrir, e descobria-os,
e mesmo eles assim desnudos, continuava sem saber, um macete sem fim e que
tontura: A natureza selvagem, imperdoável e discreta, não o deixaria antever
as suas penumbras e embaçou-lhe a visão, míope, astigmático, nuvens a brincar de encobrir e
descobrir a lua de seus olhos, embalados agora em mistério necessário e são. Ele
chorou, inconformado.
Acender a luz era insuficiente aos seus olhos escuros de
profundo interesse, e olhava-me de perto, querendo ver, de olhos encostados,
lambia-me o rosto, a querer saber se eu era capaz de arranhar a sua vida, e lhe
dar pequenas respostas: eu ia responder, mas não precisava, ele já estava
descoberto e eu vestida - para a festa de mulher e homem: animais da mesma
espécie descabida. Se tivéssemos rabo, abanaríamos, satisfeitos por um
instante, aceitando temporários, a ausência de respostas.
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IV.
Não era bem assim, de todo discreto, escondido, secreto. Permitia-se
ser visto se estivesse escuro, nem um minuto antes, nem um minuto depois do escuro,
espaço contado da revelação, do filme fotográfico, de uma ideia. Permitia-se
ser visto a quem quer que conseguisse enxergar no escuro, raios ultra,
intra-violeta, luzes anil, índigo e vermelho um pouco. Quem quer que lhe
arrancasse um sorriso, tal qual cão-guia dedicado, enxergaria no escuro para
sempre.
E para sempre, e no escuro, em festa profunda, os cães das ruas uivam às
memórias do tempo em que já foram lobos livres na sabedoria.
V.
O cão sou eu, buscando, fiel, a profundidade dos ossos que me são destinados.