sábado, 31 de dezembro de 2011

Sobre areia (e pérolas)

"— Porra! — gritou.
Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido 
picada por um escorpião.
— Onde está? — perguntou alarmada.
— O quê?
— O animal! — esclareceu Amaranta.
Úrsula pôs o dedo no coração.
— Aqui — disse."       
                                 Cem anos de solidão. Gabriel García Márquez









Atrasada nasceu.
Querer não queria abandonar o líquido aminiótico,
Foi dada como morta -
Enganando o sistema óptico.

Desfrutou de algumas horas de paz
e mergulho.
Dela não se esperava mais nada:
Entulho.

Mas daquele ventre rasgado chorou,
Tentativa de unidade sem fundo,
Com lágrimas e leites auxílio tomou
Ainda envolta em sal fecundo.

Colecionou areias para brincar com ampulhetas.
Nada adiantaria seu atraso em hora certa.
Patenteou sua praia.

Enganava a todos facilmente...
Espremia laranjas carinhosamente:
Macerando bruta cada semente.
Cega não era, lia em braile
Começando pela ponta da pele
Atrás da orelha, parte surda
E que emudece a lingua em meio à cera.
Transformava homens em lesmas sem querer.
Salvava-os em seguida com o ardido dos olhos
A desejar lagartas.

Nada adiantaria seu atraso em hora certa.
Treinou sua morte enterrando os pés na terra.
Assim como as minhocas, 
Sobreviveria.

Fez sua trajetória pelo tempo-espaço
Sem moral,
Disfarçando as memórias, até
rebelde,
Esquecer-se de morrer.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Sal, doce canção



Alegre e triste ao mesmo tempo.
Forte e claro.
Como os seus olhos, pesados e doces.
Como os cachos, macios e desenhados.

Apesar de grande, deixa certo rastro de sopro no ouvido.
Apesar de medroso, não fecha os olhos no escuro, ouve,
E deixa o tempo passar, com a pressa nas mãos.

Aquece o próprio hálito com a chama do cigarro -
Fuma e escova os dentes
Com a mesma sensação de sobrevivência. 

Desenha.
Para que rabiscos tenham sentido
Nesse mundo linear.

Observa atento, forte e lento
O crescer da grama
Para que possa arrastar os pés
Sob as mordidas das formigas.

Eis que é cigarra.
Não cabe na casca
E deixa a poesia no mundo
.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Blog em processo de renovação!

Agora pétalas já foram todas arrancadas:  Hora de mudar esse lugar!!!


(O blog "Uma pétala a mais na margarida" entra em nova fase, junto com a autora. Agora "Amargarida".)



sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Prato frio.

Num salto aprendeu a maldição:
às cobras criadas sem ereção
tocaria como flautas doces
um samba-canção sem opção.

Aos sem-coração esmagaria
orgulhos robustos, ao fingir ser cria
da suave submissão escorregadia:
de dia a muito custo,
de noite só o justo.

Aos que babam, olhos e água - pouco filtrada,
há de faltar sais em suas ações encabuladas
cheias de dedos, menos um
que se molha sozinho e num.

E sem respiração deve fazer viver
aos que ousaram intrometer
cobras: serpentes reviram suas carnes dementes
sem o direito sequer, de um rangido de dentes
arrancados um a um com alicate fremente.

De um salto, com seus pés de assalto, na cama ela veste pantufas.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

No jardim

Bem-me-quer, mau-me-quer, bem-me-quer, mau-me-quer, bem-me-quer
(mentira)

Bem me quer querendo a Margarida
Essa sim, querida
Despetála-se facilmente ao acaso do amor
Essa sim, melhor que Amélia.

Bem-me-quer, mau-me-quer, bem-me-quer, mau-me-quer, mau-me-quer, mau-me-quer, mau-me-quer!

Maldita margarida!

sábado, 9 de julho de 2011

Verdades incrédulas



E o que mistério pairava sobre o planeta Terra ou sei-lá-o-quê

Era a graça toda de não saber o porquê,

Pra inventar tudo que podia, crê:


Extraterrestres, bruxas e os programas na Tv,

E não havendo, assim por dizer, ficção

Deleitava-se tendo o mundo em suas mãos.


Vivia em paisagens (hoje) chamadas etéreas,

E seu pensamento era maior que o mundo

Das passagens aéreas, arejado

Mesmo era o seu quintal,

Onde tudo vivia mais de uma vez, soprado.


O dia passava, à revelia,

E com os pés, podia

Andar nele, cabia,

Querendo crescer um instante e. Não devia.


O dia passara à revelia

E os anos passariam em certa dose de rebeldia

Até que se tornasse

Homeopática a antipatia.


E liberdade tornara-se fresta

O mundo não mais rodava, tinha aresta.

Voaria, quiçá fosse aberta a janela do avião.

Viajava (agora) sob o estigma da rotação.


Até que se entornasse o caldo

Sobre o gosto da sopa, de modo que restasse

as letrinhas-restos de verdades crédulas

Afinal, utopias não vale as cédulas

e saber disso custou-lhe os olhos da cara

(amassada como o pão do diabo)


Que não vê o Sol, nem a Lua

Nem a poesia, nua e rara.

Aquela, que ao desconhecer a teoria

se reconhece, acumula a saliva

e nas paredes do mundo - altiva -

escarra, mas escorre.


Pois é... seu mundo não lhe cabe
nem dentro do que em globo se abre.

Andar nele não podia.

Navegar ia?


Se afogar ia.

E sem mistério.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Um abandono.

D'antes navegavas navios em mim
Agora só rio do amor:
M'come que é comédia.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Capa de chuva


A chuva agora chora
toda a vida que demora
a pingar na janela:
F
ace de vidro dela.

Canta um ninar que espanta
o relâmpago de dúvidas tantas!
Sempre assim:
A luz vem primeiro – descoberta -
mas o som que ecoa ruim.

Chuvisco que molha
o olho que nem cisco,
confusão: vejo, arrisco, petisco?

Enchente da vida e
m
esmo que seja garoa:
Enxurradas
bravas a levar a canoa:
O destino é fluido
é onda: no remo ecoa.

quinta-feira, 17 de março de 2011

A hora e a mar.




O tempo come os minutos
E
nchendo a paciência,
A
trapalhando a aderência:
G
rãos diminutos de areia fina.

O tempo adestra as horas
E
m ângulos que obtusam
O
ponteiro digital que se faz de morto
E
te faz de vivo (como o tal).

Ora, ora!
Foi-se o tempo de se dar corda em relógios...
Se ele não lhe acorda hoje
A
manhã se torna penhora.

Guarde segundos nos bolsos.
- Há emergências primeiras -

Ceda os segundos
- D
os bolsos do fundo -
Que é tarde.


Vai, a demora sempre espera:
C
erto atraso, seu acaso e uma nova Era
E
te faz entre os dedos escapar
O
que ainda achava que era.

Espera, espera, espera.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Arte secreta





Inspiração é assobio:
Assopra que passa.


O poema reluziu!

Uma faísca só lá si
Mesmou
Tão ensimesmado mesmo
Que já o dizia bem-acabado.

Assim.
Como um girassol todo entregue ao abajur,
Esperava escrever um Sol
Lá sim...

Que dó.

Prisioneiro sem combustão
Ao tentar incendiar tal emoção
Neurônios queimados se foram em vão
Estrofeados e fáceis e sós
E dóceis num esforço de música e rima

- E nada tinha de obra a prima -

O poema reluziu.

Coitado. Tinindo
Em plena meia-noite
Pronto a ser timbrado
Pela eternidade afora... aforismos.

Páginas e páginas amassadas?
Jamais,
A arte deste bem eram artes encasquetadas
Que escapavam aguadamente sob a testa,
Num suor que apagava as velas de sua insônia.

O poema reluziu sua faísca de sono e cura:
O anônimo a desejar heteronômios, pseudônimos, verbos de ligação,
Espirituosas orações, numa linda noite sacerdotal quando, literalmente, dormiu:
O poema reluziu verbetes inconcebíveis, rimas incontroláveis, pronomes inumeráveis -
Na canção de ninar de um poema que ninguém nunca viu.



segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Novidade anual

                                                                                    Lucas Alves



Tudo aquilo era novo para Otávio, até assustador. Muitas as pessoas na areia, massa avançando constante em direção ao mar. A luz da lua, branca, contaminava as vestes das pessoas: uma multidão enluarada esperava a meia-noite.


Otávio não. Otávio queria correr, sair dali e se esconder. Aquela não era a sua seita. O menino sequer sabia o que era uma seita, veja bem. Só a mãe poderia salvá-lo, ela que sempre sabia as soluções, todas. Dessa vez, porém, ela parecia não respeitar as angústias do filho. Ele pedia socorro e ninguém o ajudava. Seria castigo? Mas qual o pecado? Era muito o medo; tudo em volta acenava com hostilidade. Buracos cavados na areia rodeados de velas, flores lançadas ao mar, garrafas estourando.


Todos os barulhos eram ameaças, cercavam Otávio indefeso que só podia se agarrar à mãe. Mas ela impassível, imagine, a mãe impassível naquele aglomerado nocivo. O menino chorou, então, pois esta costuma ser a medida prática mais eficiente nesses casos agudos. Os berros do filho logo receberam alguma atenção da mãe. As lágrimas não, que essas não existiam. E choro sem lágrima, para quem conhece a paternidade, deve significar de pronto: manha. Tanto foi que Otávio ganhou bronca; carinhosa, claro, a ocasião era festiva. O menino empoleirou-se no colo da mãe e sentiu-se mais seguro. As mães sempre solucionam.


Veio, entretanto, o estopim. Este realmente um sinal de susto, barulho alto vindo do céu. O perigo enlaçou o garoto e apertou suas costelas até vir o grito genuíno. Agora sim, acompanhado de muitas lágrimas. A lua logo sumiu, escondida atrás das explosões que irrompiam na escuridão até então tranqüila. Todos ao redor extasiados em alegria, comemorando e brindando àquela profusão de estampidos barulhentos. Otávio não compreendia, pensava estar num sonho mau; aqueles sorrisos certamente eram frutos de um pesadelo.


Apegou-se, assim, a esta suposição. Estava dentro de seu sono, logo mais acordaria e as assombrações desapareceriam do mundo físico. Mas enquanto isso, que faria o garoto? Grudou-se ao corpo da mãe, que acariciava seus cabelos. A crueldade dos sonhos está em provocar sensações. Otávio aconchegava o couro cabeludo nos dedos dóceis da mãe e se espantava com a qualidade da sua imaginação; era real demais. Tamanho era o realismo daquele mundo onírico que até calafrio provocou. A mulher depositou sua cria à beira do mar – frio – e pegou-lhe a mão. Ele tão pequeno, as dimensões delicadas.


Otávio acolhia as marolas em suas canelas finas e se acalmava; o pesadelo ficara para trás, dali só se via o horizonte azul-escuro. De repente a mãe saltou a primeira vez, o filho a imitou. Então a segunda, a terceira, a quarta. Ao todo sete. Pularam sete ondas, iluminados pela luz intensa dos fogos de artifício. Ela agachou-se até a altura dele – as saias molhadas nos joelhos – e beijou-lhe a bochecha direita, a esquerda, a testa e o queixo.


- Feliz ano novo, meu filho.