quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

A Árvore de Natal



Há quanto tempo estive
ausente, embrulhada
para o presente.

Abri-me para o mundo,
desfiz o laço ao pé da Árvore,
sorri e tudo ficou claro:
Ora brilham as luzes,
ora não brilham.

Há quanto tempo estive ausente!
Embrulhada
para o presente.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017



Acaricia esse bloco de pedra,
que já foi lava,
que já caiu, meteoro,
que já sustentou edifícios.

Acaricia esse bloco de pedra
que está no meio do caminho,
que é quase gente, paciência,
acaricia esse bloco de pedra.

Acaricia esse bloco de pedra,
tal pétala, tal pálpebra, tal península
que a água por todo lado me banha de saudades de ir.
A onda me bateu: acaricia
esse bloco de pedra infante
que não chora.

Acaricia esse bloco de pedra que pode ser gente, 
um corpo moldado em segredos, escuta
a delicada estátua em pedra bruta 
- os pés enterrados, as mãos ao vento.

Acaricia esse bloco de pedra 
(pedaço de gruta no chão das vidraças):
com amor se limpa o pó do irremovível, então vem
e acaricia esse problema insolúvel que está na Terra.




quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Orientação






Uma fenda que se abre e estou
Sendo puxada para todos os lados:
O céu, o abismo, o leste, o oeste, a diagonal,
A estrela em meu peito, as cinco pontas de lança
Apontadas para mim, meu DNA, a realidade ficcional,
O materialismo, a poesia, profissão.

Quase não existo e não estou quebrada.

Uma senda que se abre e estou girando dentro
da porta giratória, carrego os meus anéis e armamentos,
ouço o som dos meus metais - minhas armas também me doem.
Estou girando dentro da porta giratória: tenho que saltar
Para dentro ou fora?

Irei saltar?
A fenda se abre, e tudo parece separação e sociedade.
Como pode?
Tudo parecer separação e sociedade?


Não se ofenda: palavra é brincadeira.
Salte, sem assaltar-se, renda-se, 
Tranquilize-se, uma senda se abre,
E você é puxada para todos os lados,
Quando não?
Visite o outro lado da moeda,
O outro lado da moeda é a mesma moeda,
Quando não?

Uma fenda abre e você
cresce: não fique presa em vão.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O livro dos indícios



I.

Não quero mais ficar de castigo,
e ter que escrever atrás da porta,
da porta de madeira imitada, escondida
atrás da imitação, a natureza deportada.

Não sou traidora, mas irei me entregar

à tradução e prosseguir com o trabalho
da memória sincera na frente da limitação.

Não há mais suspeitos: enfim, livro!

Eis a prova.



II.



Pergunto:
Poderei eu escrever essas palavras?
Seguirei o intuito, leve, levando ao papel todos os momentos em que sou chamada?
Sim,
Seguirei, rápida, o diário intuito de ousar as palavras
Ao chamado do inventário, e ventar sobre a face da Terra
No relatório da passagem do frescor (e da lava).

Nenhuns desses poemas são meus. Nenhum.
Vou coletando, colhendo no meio dos caminhos,
Dor no dedinho, um fio de cabelo solto escrito no chão,
A lágrima que pesquei do seu pecado, um grande circo,
Um cisco caído nos meus olhos mediúnicos, a flor
Que é fruta na letra do poemador.  

Esses poemas não são meus,
Sou encontrada por eles, encantada,
No meio do cotidiano a caminho
Sou chamada e atendo prontamente.
Eu sei: pareço atrasada, é que
Atendo à marca das horas,
a despeito das horas marcadas.
















segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Carnavalesca



As ruas cheias e breves, como a vida, e eu comovida:


O silêncio das lantejoulas,
o equilíbrio dos bêbados, 
a aproximação do desconhecido, 
a música do esquecimento, 
a suspensão da ordem, 
as mulheres: homens da subversão. 

Chovia, chovia, e como a chuva selecionava os participantes da festa, eu ria como um rio
de renúncia e segredo, urinando em pé em meio à tempestade, 
a chuva denunciava a nudez por debaixo das roupas, sim, a carne da normalidade! 
eu via, e como via: lá estavam nos blocos do concreto as fantasias de coragem! 
Eu atirava e os policiais do medo abraçavam-me pedindo liberdade e perdão, folião, 
ferida na boca calada da noite, sorrisos largos como ventres armados, mata e condensa, tira!

Caída no chão da vida que era avenida, ninguém veio me socorrer, e era doce a gentileza de deixar passar.

Serpentina, repentina.



Que rua é esta que nunca entrei? Todo esse tempo a pulei e agora pulando encontrei?





sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Inventário


Eu já morei nas montanhas, no alto;
Já morei num arco d'um porão;
Na favela, num barraco à vela;
No meio do caos, inteira em cacos;
Dentro da floresta, na ponta da escuridão.

Eu já morei em outro país, tive paz
Em outro planeta, caí e sobrevivi,
Morei na rua, no chão estive no céu.
Eu já morei em alto mar, estive à deriva,
Já estive no controle, já me perdi.

Eu já morei na caverna e na cobertura,
Já dormi no capacho, na casa do cachorro,
Na cama do rei.
Já estive no casulo, já voei.
Já estive no fundo de um poço
E também no colo de um moço, lembrei!

Fiz tudo isso por um triz. 
Ah! Que vida, grande atriz.

Eu já fugi de casa, fui expulsa, fui convidada, 
Hospedada, abrigada, desabrigada.
Já fiquei pra fora, esqueci a chave, perdi dentro de casa, 
Pulei a janela, fiquei presa e quis ficar.
Chamaram-me para voltar, mandaram-me cartas, mensagens, 
Ligaram-me, imploraram, me desligaram, eu me desliguei,
Corri, atravessei a rua, viajei, fugi 
E quando olhei para o lado estava bem na minha frente, aqui.

terça-feira, 26 de setembro de 2017




 Porque o gênio é forte.

E é próprio dos sexos serem frágeis.
Generosos deveriam ser os gêneros 
e ágeis.

Porque o gênio é forte.


quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Mil canções

                                                           
              Para Sheila Sanches    

                  




Renascer
dessa palavra tecer
mil canções.

Renascer não é só verbo falado:
é um verbo alado alisando a transição,
o instante em que sou tecida pela canção,
um suspiro depois do morrer,
é o último fio da transcrição, é quando
mesmo torta, seguro nas linhas
e teço a canção tocando a página.

E tocar a página é mais do que tocar
a alma, é tocar a alma e percorrer o caminho
de volta à substância, em palavra renascer,
musicada.

Renascer é todo vir a ser da novidade
e é a verdade:
Renascer é o verbo eterno
onde eu toco a canção porque eu fui tocada
e retocada, e retocada, e retocada...








segunda-feira, 18 de setembro de 2017





Sombria e amiga do sol...
Sombrinha, amarga amiga!
Silva na selva, enquanto silva o sol na relva
Antes de fazer sombra a plantinha.











domingo, 17 de setembro de 2017

Floema



Soturna e noturna, dizem.
Sombria e amiga do sol, eu digo,
aquela que retorna e recobre de lodo as paredes
é a estranha mãe dedicada, protetora da beleza:
a que embolora os pães, é a mesma que os faz crescer.

Aquela que desequilibra os quadros, bate as portas, pisca as lâmpadas,
indiscretíssima no rangido dos portões que o desperta: é sonho
o amor perdido, o coco na calçada, a roupa furada, o medo.

A estranheza irá se apresentar,
a lata estufada, a pele sobressaltada,
o escândalo silencioso dos ossos tortos,
o fim,
(não se apresse)
estranhas aranhas de beleza inconfessável vivem,
como um fio desencapado à espera do choque (que virá)
daquele beijo de amor.  
Integre-se e relaxe, viva.
  
A estranheza ronda a todos nós e policia, mas
a incongruência está dentro da lei, senhores,
e hora ou outra escapa a indiscrição, um olho vesgo.
A estranheza, sei, é um disparo no coração do cotidiano
e no cotidiano do coração
(Continue caminhando dentro)
e às vezes não chega a ser um disparo, 
é apenas o revolver em cima da mesa.

Quando ouvir um disparo, segure o rojão,
saiba que o perigo está suspenso,
que o tiro é pra cima, olhe pra dentro.

(A que embolora os pães é a mesma que os faz crescer)



sexta-feira, 15 de setembro de 2017



O dedo na quina é certeza
Na dúvida do aplauso.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017




A vida é
A vida é mar
A vida é mar é
A vida é mar é imenso.

Serei
Serei a
Serei aquela que navega ou nada?

domingo, 20 de agosto de 2017

Carta à Mãe



Como se fosse a mãe (e é
me deu a luz e mais:
dá-me à luz, ao sol, ao mar 
das possibilidades, e sonha o sucesso, 
brinde eterno que beberemos.

Olha-me como se eu estivesse no colo (e estou),
alimenta-me, embala-me em doçura
firme e não me deixa cair
(deixe-me cair!).

Trata-me como se eu ainda fosse 
uma criança (que sou),
e castiga-me a sua braveza - eu choro 
pois você também é  criança para meu amor.

E como se eu não soubesse falar (e não sei
troco todas as palavras, você entende pouco, 
mesmo assim quer falar comigo a minha língua 
por isso expressa a confusão expressa.

Discordo como se eu fosse a sua filha (e sou),
mesmo assim você cata os piolhos da minha cabeça,
agradeço, pareço aborrecida - agradeça -
eu não te conto como perdura em mim a memória da coceira,
e não há o que fazer.

O segredo é não fazer.

Afasto-me um pouco, pois preciso diferenciar-me para viver,
não me segure, preciso ir um pouco (e vôo), 
assim posso enxergá-la bem melhor e saber por que voltar (e volto).
E como se fosse de Propósito (e é) ensina-me a ser livre
Para que você possa descansar (e se cansa!).

Discordo como se eu fosse a mãe (que sou),
silencio como se você fosse a filha (que é)
e é preciso crescer o perdão para se aproximar:
estamos quase lá (e lá estamos).
É preciso crescer em perdão para se aproximar,

e como se fossemos adultas nos alcançamos,
e como se fossemos crianças nos perdoamos
(ainda quentes)

no sereno do mundo.

sábado, 19 de agosto de 2017

Nudez sem medida




Minhas roupas estão em greve:
Não me servem mais.

Minhas roupas já não me servem mais
E o meu peso é o mesmo.

A esmo carrego a minha nudez
Sem funcionário.

terça-feira, 15 de agosto de 2017





Eu pensei que te beijava,
 mas era concreto.








segunda-feira, 31 de julho de 2017

Poemas bilíngues de Yin e Yang



                                                                                                       

Co-autoria: Diego Ortega







I.
E todas as coisas chegaram a tempo:
¡Me perdí buscándote!
O barulho dos trens chegou aos ouvidos
Hoy soy esta cáscara de piel que no puedes tocar,
E seus cabelos voavam pela janela...
No quiero
Respirava fundo, talvez eu não devesse...
Saborear las rarezas de mi cuerpo.
Oi!



II.
A madrugada caiu-me nos olhos
A esa hora huyo de tus piernas,
Quem irá me fazer dormir? Já não posso.
Esas pobres almas arrastrándose hasta sus refugios...
Pois não haverá mais luz do dia e
Viajo a ese momento de luciérnaga y páramo
Mesmo assim, não poderei deixar de vê-lo.
Y cerré los ojos para olvidar.



III.
- Eres una mixtura entre soledad y peligro...
Eles sorriam, mesmo golpeados nas pedras...
- ¿A quién le pertenecen esos corazones aplastados?
Se me quisessem eu teria os esmagado ainda mais...
- ¿Quién es el culpable?
Foi sem querer.
- ¡Ay! ¡No! ¡Sólo se escuchan sus gritos!
Sim?
- Sin querer.
(E rolamos montanha abaixo.)



IV.
As estrelas esqueceram-se dos meus pés?
Sáqueme de aqui!
Aqui morrerei?
¿Viviré como los árboles?
Sementes? Meu campo é fechado!
Yo sé.



V.
Me gustan las semillas,
Se mentes teu campo é aberto
Abiertas o fechadas para los encuentros:
Como um deserto, cheio daquele vazio
Es el lugar de donde aparecí,
Onde desaparecer é reconfortante.
Es la gran noche que dije que sí!



VI.
Mi lengua recorrió tu piel,
Meu coração me batia,
Experimenté tus placeres
Doía-me
Profundamente
Dizer... amor?
Me decían... ¿tristeza?
Essa língua eu desconhecia...
Entonces, ¿por qué la entendí?



VII.
Pienso
Poder dançar
en poderosos ancestros:
nas pedras do tempo,
 pasado,  presente,  futuro infinito
esmagar com os pés o finito
y en partir el Universo.
em nós.
Pienso.









quarta-feira, 5 de julho de 2017

Ciranda





O não é quem decide.
O sim nada decide, serve ao que já é.
O não é quem decide, pondera, progressista.
O não é quem decide
                          não é quem decide.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

À beira

                  

Para Flavio Aoun





O meu tempo não era mais medido pelas horas - eu estava muito velha e as horas não me cabiam mais: o meu tempo era medido por goiaba caída, caída da grande árvore plantada em meu quintal - não que ela fosse realmente grande em tamanho, mas comportava um grande número de frutos inumeráveis, e isso era a sua grandiosidade. Temporal:

De manhã, quando vibrava no chão a primeira goiaba depois do despontar do sol, quando a primeira, corajosa e exemplar goiaba vibrava o chão, eu também voltava para a terra. Os meus olhos acordavam para a novidade e para a repetição, eu levantava-me da cama para espreitar, bem devagar - fingindo doer as juntas, pois se eu me apressasse chegaria mais rápido no último instante, e eu ainda queria brincar. Acordava e seguia em jejum até que caísse a próxima goiaba, e a próxima, e a outra... cada goiaba, uma tarefa, e assim eu colhia as horas certas, sendo a escolhida das horas. Eu sabia estar ganhando tempo para um dia ser atemporal.

Quando caía a segunda goiaba eu podia, enfim, tomar o meu café da manhã, sutil, não mais glutão, como era antigamente, e depois ficava à mesa, o ouvido preservado e atento, até que caísse a próxima fruta madura; e ficava pensando que se eu houvesse plantado outras árvores frutíferas, talvez tivesse mais tempo, mais opções de contratempo, talvez conseguisse dançar. Mas já era tarde. Era tarde, e nem havia trocado de roupa, pois a terceira goiaba demorava a cair, por isso eu ficava imóvel, à espera (enfim, disciplinada). Era assim, e sucessivamente, eu sabia a hora de realizar as tarefas na ordem. Houve dias em que eu tomei café e almocei ao mesmo tempo, tamanha era a abundância de frutas, que caíam em duplas, em trios: pois que cada dia o tempo era único, e dificilmente repetia, a minha única responsabilidade era viver uma vez mais, uma goiaba a mais na árvore da vida.

Assim era, e a todas as minhas poucas tarefas de velha coroca deviam ser (e eram) precedidas por uma goiaba caída, assim era a contagem do meu tempo: sonoro e aromático, como havia sido a minha vida. E não pensem vocês que eu era velha pouca, eu estava finda já - a aurora da minha velhice já era passado - eu estava gasta,  vivia de goiaba e teimosia, ninguém sabia, mas estando naquela altura da vida era preciso uma ideia fixa para não cair, e eu me escorava, gentilmente no tronco daquela árvore, eu estava à beira. Eu estava à beira e a sina continuava sendo a mesma: os jovens parentes não lidavam muito bem com o meu tempo, perdiam-no a procurar diagnósticos infrutíferos, perdiam-se a marcar consultas que eu jamais poderia comparecer, perdiam-me, e eu estava à beira.

Quem cuidava de mim com conhecimento era a minha neta mais nova, Larissa, a continuação, a flor de goiabeira, e a sua companhia era a própria primavera de esperança e perseverança, pois as flores são delicadas fisicamente, mas têm grande força interior para sobreviver quando dedicadas - sei que as plantas sofrem muito mais com as pragas na época da floração, e por isso a planta tem de ser forte para conseguir sustentar a leveza da flor. Depois de pensar isso, já não sabia se eu era a flor e Larissa a árvore, ou se eu era a árvore e Larissa a flor... Ela havia percebido a contagem das goiabas e respeitava pacientemente, muito perspicaz, ela havia percebido sem eu dizer uma palavra, e com 7 anos, cuidava de mim, fazia-me companhia algumas goiabas do dia, e eu morava em seu coração frondoso.

À tarde choviam as goiabas: eram as horas da pressa na Terra, da necessidade de resoluções rápidas, as horas sem perdão, as horas consequentes; à tarde choviam as goiabas, as adiadas, e era a hora da pressa na Terra, da necessidade de resoluções rápidas ainda para este dia, dos destinos traçados. À tarde choviam as goiabas - depois da tempestade viria o adubo e eu estaria moída, viva! À tarde choviam as goiabas, e grande era a minha desenvoltura em executar as tarefas no tempo certo, o tempo do céu, e eu memorizava esses momentos de rápida juventude em que eu gastava o restante das articulações. Ah, se eu pudesse dizer tudo que sabia, ah, se eu pudesse saber tudo que eu sabia, mas eu estando à beira não podia mais intervir diretamente no mundo, tanto que não podia escrever que tudo isso não será escrito, pois que escrevo pouco, doem-me os dedos e minhas mãos não podem acompanhar o ritmo do meu pensamento, a mesma sina de sempre, agora entendo. E pensando tudo isso, imagino, como um sonho louco, se alguém poderia acessar a isso que agora vivo e escrever. Que bom seria. Assim continuaria a viver, assim poderia viajar, desprender e alguém teria trabalho artístico. Que bom seria se alguém colhesse as informações que caem em minha cabeça, pois há tanta informação quanto há goiabas no mundo. Será possível? Não sei, mas se for possível, agradeço e lhe digo, colha as goiabas, seja do galho, seja do chão. Colha as goiabas com as próprias mãos. Deus lhe abençoe!


-



Jamais saberiam que sempre ela sempre fora velha e que, finalmente , estava à vontade no corpo e feliz, agora que coincidia a forma e o conteúdo, que havia uma incrível desenvoltura em seu seu corpo de velha, e que aquele corpo a representava: enfim poderia ser! Muito velha, e ter a idade da pedra lascada, do fogo em seu interior, velha! E não dar satisfações; percebeu que, na verdade, jamais precisaria ter dado satisfações, que as pessoas sempre criariam, por elas mesmas, as definições que lhe convinham, eram criativas, e que a verdade não bastava, a verdade era simples demais. Todas as suspeitas já haviam sido levantadas ao longo desses anos todos, e por isso poderia fazer uso da sabedoria do segredo: o silêncio.

E no silêncio da noite ela sabia que era hora de dormir - não bastava anoitecer, era necessário que as goiabas cessassem de cair, que elas também silenciassem. Para dormir era necessário que as goiabas cessassem de cair: haviam as noites demoradas de dormir e outras que eram noites ainda quando claro (pela ordem sucessiva dos acontecimentos, três goiabas após o jantar); e quando o silêncio das goiabas acontecia ainda durante o dia era permitido fazer o que quiser, era o silêncio permissivo, a hora da liberdade e sonho, e podia ler, dançar, deitar e ficar acordada ou o que lhe desse na telha. Um dia, durante um grande silêncio permissivo resolveu plantar algumas sementes de goiaba, queria garantir a disciplina das gerações aproximadas, e durante algumas semanas ansiava pela permissão diária para poder cuidar das mudinhas, e quando não recebia permissão, Larissa (a flor) cuidava das plantinhas. E assim, como um presente de Deus, gradativamente, a cada semana era lhe concedido mais tempo silencioso para cuidar das plantas, essa era a sua obra, o tempo lhe era doce, e lhe ajudava a plantar, concedendo cada vez mais silêncio. Ela estava à beira, escorava-se na goiabeira, e os seus silêncios foram crescendo, as frutas demoradas, cada vez mais contadas até o seu tempo acabar numa tarde de Outono, de folhas livres.

A última goiaba rolou aos pés de Larrissa (a árvore), e Larissa comeu, aliviada.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Universo ou Anatomia da distância



Se nem os átomos se tocam,
quem dirá nós?




I.

Eu consigo vê-lo
mesmo enovelado
enrolado em si
mesmo 
inteiro velado
eu posso ver.

Você vive
em meus olhos
- eu consigo ver -
vivo em seus olhos
o universo particular.

Eu consigo ver à distância 
a distância 
entre as nossas partículas:
E quando te olho
reconheço ser
inteira a partida.

Você vive
meus olhos,
e eu vivo 
em seus olhos
um recomeço:

Feliz, reconheço que quando te olho me reconheço, mas
Triste, vejo as grandes distâncias entre você e eu,
E não se abraça uma ponte:
Se atravessa.



II.

É difícil enxergar de longe: 
As distâncias são imensas, os encontros demoram
e estou vendo tudo. É difícil enxergar de longe.
A ignorância não me refresca e os encontros demoram.

Quantas léguas de excesso e falta teremos que caminhar?



III.

Enfim, começo e fim, distante e próximo.
Mesmo diante da sombra da sua dúvida
Reconheço, vejo a luz e vejo o túnel:
Primeiro eu vejo a luz, depois o túnel,
Você vê primeiro o túnel, depois a luz.

Quando iremos nos encontrar?
No meio desse caminho
Onde há luz e escuridão a nos cegar?

Eu, que vivo a imersão, gostaria
de caminhar um pouco na sua construção,
aprender a viver.
Mas para isso você tem que conseguir sobreviver à imersão, peixe do universo, lama de estrela, e aguentar firme a convicção, cavar o próprio túnel, encontrar a luz. Não se perder na viagem ao interior. Saber voltar.

E eu saber ficar.

Você vê primeiro o túnel, depois a luz.
Eu vejo primeiro a luz, depois o túnel.

Eu consigo ver.
Quando iremos nos encontrar?








terça-feira, 13 de junho de 2017



Porque eu imagino, eu vivo.
Mas também,
Porque eu imagino, eu não vivo.


A saudade é astronômica.
O nosso encontro, microscópico.




domingo, 21 de maio de 2017



A vida passou voando,
E eu que estava cabisbaixo,
Com o queixo no peito,
Não fui capaz de ver.

A vida passou voando.




terça-feira, 2 de maio de 2017

Aniversário





Doeu? Hoje você nasceu.
Feliz adversário.




Eu soava falso: quando, enfim, poderia eu ser?

Eu soava falso, irreconhecível natureza, desencarnado, como se a alma habitasse o corpo, mas seu corpo não habitasse o mundo das coisas e dos homens, e o eu sobrevoasse translúcido, sem lugar onde pousar, carne sem sombra, célula disfarçada. Soava falso, e quem dirá que era a mentira a mentira que eu nunca foi?  De um jeito ou de outro, mentira, e ser mentira é diferente de ser discrição e mistério. Evitando ser quem eu era, eu soava falso, como poderia ser creditado, evitando o timbre, a voz? Eu soava falso, eu soava falsa, evitando ser quem eu era, morria a cada passo, várias vezes, viva-morta, existência tímida, voz no cadafalso, evitando ser quem era, caminhando pelas beiradas, mas não haviam beiradas, eu soava falsa em beiradas falsas, ecoava falso, duvidosa, sempre, dividendo, luz esparsa, um constructo defeituoso, falsa, falsa, valsa, falsa, eu soava falso e era falsa, evitando ser quem era, como poderiam me reconhecer? Desenganado como poderia eu nascer, Cesárea?

Estrangeiro sem país, pensando que eu era estranho a todos, eu era estranho a mim, que não materializava, não nascia, em vida quase adulta já, a não nascida, evitava ser, toda a vida até agora havia sido gestacional, como poderia eu ser? Por isso foi preciso adulterar várias vezes a data do seu nascimento, manter a morte disposta, de novo ser criança e crescer, foi preciso adulterar várias vezes a data do meu aniversário, e não era fraude, era necessidade. O eu depois de tantas tentativas de nascer amamentava-se de coragem, o eu soava selvagem, eu recém-nascido na selva do mundo, eu soava selvagem, palpável, contundente, um escândalo, feroz animal, e quem dirá que eu nunca fui a mentira que eu nunca foi? De tanto tempo adormecido, óvulo no útero do mundo, bolinha de gude esquecida, nasceu como um rugido, contundente e marcante, na incivilização. O eu soou selvagem, soava alto: suava frio ao perceber que ainda soava falso. 

Eu soava falso, eu soava falso, e o animal selvagem que pensava que rugia, soava falso, e na verdade, fugia. Fugia de joelhos dobrados, raiva e oração, fingia, eu não tinha os pés no chão. Rugia, barulhenta presa fácil do mundo, o eu soava falso, soava falso, sendo como eu era, como poderiam reconhecer?  Para isso foi preciso adulterar a data de seu adversário: a falsa idade. Adulterar para tornar-se adulto: renascer nativo, e não mais se adulterar, cativo de identidade. Soar na Terra! Soar na Terra! Eu gritava dentro. Soar verdadeiro! Para isso foi preciso acordar mais uma vez, o eu tentar de novo, abrir os olhos, se alimentar, seguir o caminho das horas, repetição e variação, surpreender, caminhar, cair, caminhar, no próprio eixo segurar, seguir de pé, dominar a linguagem, as ferramentas, a modulação, a voz: soar na Terra! Soar verdadeiro, soar contundente, soar reconhecível. Ressoar nas paredes, e como são precisas as paredes... Construir a casa para um soar verdadeiro. Com a mão na massa o eu sovava em silêncio, e de longe se ouvia.

Que grande dia.

domingo, 23 de abril de 2017




Se apagar, acende
Se acender, ascende
Se ascender, assente
Se assentar, aceite a paga, sente.



domingo, 9 de abril de 2017

Miragem



Para Lira Ny






Quero escrever sobre os outros tempos, e assim faço.
Escrevo sob o templo, é assim que faço
E pareço distante, mas estou tão e tão perto
Que sinto apertar.

Estou perto, bem perto da miragem,
Um grande sol aquece a minha cabeça,
Mesmo assim tudo é real, que impaciência.
Estou perto, bem perto da miragem,
Um grande sol aquece a minha cabeça.

Espero, sei, sinto a sede, tremo,
Estou muito, muito perto da miragem,
E a tudo vejo: o real, o rio, o remo.

Desiludida, minhas mãos tocam
A miragem diluída,
Um grande sol aquece a minha sombra,
E já está escrito.


domingo, 2 de abril de 2017

As goiabas

        


        
        
         Diante da goiabeira eu medito à paciência:
         Espero as goiabas caírem, e não as como, nenhuma.
         Vibro de alegria cada vez que uma goiaba vibra no chão
         e não como, nenhuma.
         Goiaba espatifada, eu inteira.
         Nenhuma goiaba me pertence, nenhuma.
         Apenas a maravilha me pertence:
         Eu e a goiabeira a desprender.

         Debaixo da goiabeira eu medito à fé:

         Espero as goiabas não caírem, e não há como,
         elas caem, todas -
         com mais intensidade do que quando eu não estava embaixo dela.
         Quanto mais elas caem, mais eu espero que elas não caiam
         E quanto mais espero que elas não caiam, mais me acertam
         em cheio e me esvaziam:
         Goiabas abertas, eu também.

         Em cima da goiabeira eu não medito:

         Como não sou mais criança, e ainda temo ser mortal 
         Em cima da goiabeira eu ainda não medito,
         olho os pássaros, autorizados a colher as goiabas da leveza,
         aquelas que não caem, e porque anseio 
         o céu encosta-se a mim e (quase) eu não sinto nada.
         É coisa comum, essa de estar abaixo do céu e sentir
         ser um pedaço ao léu, creio.

         Acima de mim, a goiabeira

         Acima da goiabeira, o céu
         Em cima de mim, o véu.
         Em cima da goiabeira eu ainda não medito, 
         Mas pode crer, eu acredito

         Que num dia, distante da goiabeira, eu  meditarei à memória das estações,
         como um trem passado, lento, férreo e cheio de goiabas,
         e lembrarei, já sem dentes, das goiabas cheias de sementes
         e das sementes cheias de goiabas e,
         sem comer, estarei finalmente satisfeita.




    
       

      

         




sábado, 18 de março de 2017

A goiabeira

          





Presa ao chão, mas passível

Beira a minha janela, chamando temporais,
Abriga os animais, desobriga as goiabas,
e me obriga aos animais - bem na beira,
a goiabeira: margem entre o mundo e eu.

Pedaço da Terra, beirada de proteção,
filtro dos meus sonhos, madeira das realizações -
tudo ao alcance. Em minha janela vem saudar-me:
sem veneração, suas folhas tocaram as folhas
da minha mão,
num respeito de ser vivo
que me tocou as páginas
de ser vivo.

E tocar-me a página é mais do que me tocar a alma:
é tocar a alma e descobrir (e percorrer!)
o caminho de volta à substância,
em palavra renascer.

A goiabeira me tocou as páginas, fui folheada.

                                                    















sábado, 4 de fevereiro de 2017



É assim: mal começo, a folha já me pesa às costas, 
e começo a pensar se devo mesmo escrever,
"porque são analfabetas as folhas de papel"... 








                                                                                         .      
                                                                                .
A culpa das coisas inúteis paira no ar.
Sim, paira no ar: acaso poderei eu deixar de respirar?

Paira no ar que respiro...  um olho que não vê.
A culpa das coisas inúteis paira no ar, mas também paira no ar essa folha que lê
A culpa das coisas inúteis:
Seus valores inenarráveis - presos em si,
O tempo perdido - em que me encontro,
O achado - que não pode ser roubado,
As coisas que lucram um centavo do real - sendo o próprio ouro.

Paira no ar, quase sempre, o abandono do lar,
O sucessivo desânimo das coisas que deixarão de acordar, 
O cansaço, a falta de ar. De fato
A inspiração está sob suspeita e, mesmo assim, diante do forte,
eu não deixarei de respirar:

Quem dará ânimo às coisas inanimadas?
O que irá me animar?









terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Dislexia



A mulher era casada e não tinha marido.

O padre sofria de dislexia – sofria não, que ele nada sofria, quem sofria era ela que era casada e não tinha marido - o padre, à hora da cerimônia, em contato direto com Deus, em contrato irrevogável, sentenciou um equívoco, dizendo “Eu vos declaro, alarido e mulher”.

Deveriam ter se casado sem cerimônia, à hora do sim de qualquer hora, à justiça do sim, naquela hora tola, à hora de calor. Por um momento, diante das cerimônias do noivo ao propor cerimônia, duvidou do amor, será que o noivo não mais gostava dela, assim, tão franca e sem cerimônia? Franca ela era sim, mas não era gratuita, ele sabia que não era gratuita.. . Por pouco não se desentenderam, por pouco não confundiu o pedido com falta de confiança - mas ela era uma mulher sem cerimônias e por isso mesmo aceitou com leveza a proposta do noivo.

E, sim, no dia, sorriu, mas havia excesso de solenidade, a etiqueta colada às costas, o sorriso desenhado nos lábios. Havia de passar rápido, tomara deus, que a solenidade doía-lhe os pés e a impedia de ser completamente feliz.  Ela jurou! Jurou perante Deus e o diabo daquela gente que seria fiel, que seria fiel, que seria eterno, que seria de todo modo. E o padre, cerimonioso, em contato direto com Deus, mas disléxico, conclui para sempre a celebração, e disse: “Eu vos declaro, alarido e mulher.”

Fez-se presente o presságio, um segundo após a proclamação daquelas palavras:

Diante da confusão, todos aplaudiram, tentando evitar um constrangimento do padre e aplacar os risinhos, beijo do noivo, aplausos dos convidados, todos faziam vista grossa diante das palavras trocadas do padre, será que não percebiam, ela estava casada e sem marido, ninguém se importa? onde estavam as cerimônias de todos? Cerimoniosa, seus olhos buscaram o do noivo, pedindo socorro, calma meu amor, não tem problema, por favor, não cause constrangimentos justo agora, dá cá a mão, eu te amo, está tudo bem, todos querem nos cumprimentar, foi apenas um detalhe sem importância, pronto, tudo está feito, um beijo, você não está feliz, assim me magoa, venha comigo, vamos, pelo amor de Deus, não foi nada, olha a foto, sorria, dá cá um beijo, não seja tola, aqui estou, as pessoas vão reparar, não me envergonhe, se ajeita, olha pra mim, me ouve, não seja boba, é claro que eu sou seu marido, aqui estou, vamos cumprimentar os convidados, olha pra foto, eu te amo, não seja tola, todos já estão estranhando, o padre até se retirou, a sua mãe está chorando, veja só o que você está fazendo, minha filha, esse padre é assim, deus com certeza já concedeu o perdão e faz a devida correção no livro dos céus, não se preocupe, espera, não vai falar nada, não me envergonhe, por favor. Eu te amo, meu amor. Os convidados estão ansiosos por vocês, ouça, venha, limpe esse rosto, venha, é apenas um detalhe.

Alarido e mulher caminharam em direção à saída.



sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O monstro



Ao monstro não é dada outra maneira de existir:
Que delicadeza essa, a de não me deixar dormir.







Passei uma noite em claro, inteira, o sol atrás de mim,
E eu estava noite.  No silêncio, apenas o batuque,
Eu dançava parada, eu estava vida.
Os olhos abertos no escuro, coberta de fé no silêncio,
Deitada, meu coração era batida no colchão da Terra,
Viva, eu estava música, acordada.

Na calada da meia-noite, eu estava a pino,
E pude saber, aos poucos, e de um saber piano,
Do batuque intenso dentro do peito,
Do medo, do incansável segredo pude saber:
Monstros tocam o meu coração.

Tocam, mesmo sendo intocáveis as suas mãos:
Monstros são para serem deixados em paz - nós não.
Tocam meu coração, que vive, zabumba vibra
O irreversível da vida, vive sem perguntar se quer viver.

Tocadores de eternidade! Eu tenho medo! Tenho medo e coragem!
Façam-me viver! Músicos me batam, que sou toda coração,
E coração não vive só de delicadeza, é preciso pulso firme, a vida!
Palmada forte! O sim desfibrilador! 
Que susto: a aceitação.

Ao coração não se pergunta se quer viver: bate, indefinidamente,
Finito e definido som.
Ininterrupta batida na porta que não me deixa dormir,
Porta pesada, meu peito, pesadelo, luz piscada: quem está aí??

Mãos incansáveis tocando os corações
Enxerguei por um instante, improvável beleza, e quis falar
A você, exímio tocador, ninguém tocou?  
E quis tocar, mas disfarcei, para não atrapalhar
A música incansável de eternidade, a festa nos porões do medo da paz.

Calei, para continuar a viver.

Era noite, mas eu estava amanhecida,
Enruguei-me um pouco até saber:
Deve adiantar-se à escuridão para alcançar o dia.









domingo, 22 de janeiro de 2017

Agricultura


Longe do meu coração o amor parece selvagem, percebi, agarrada às ferramentas.



Perto dos corações selvagens meu amor é uma floresta: Incansável, floresta, longínqua, floresta, vívida, floresta - perigo e vida para além da civilização.  Mata rasgada pelo sol, réstias imensas, trilhas, beira transbordante, um abraço fértil. Longínqua, a que está longe, floresta, intangível, floresta, que vai longe, floresta, além da civilização, além - e não antes - que este amor é evolução. Perto dos corações selvagens meu amor é uma floresta, e estendo-me, incontável, para fora dos limites do cotidiano, fora dos limites do tempo, grande e invisível, fauna e flora transcendentes: sementes que emperram as engrenagens das máquinas, água de rio sobre os aparelhos elétricos, a pausa e o sangue no relógio de pulso - parece invenção, mas não é, olha a folhinha flutuando ali, incrível voo sobre o nada.
Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, sentido simbólico nos confins do espírito, floresta, velha, floresta, fresca, floresta – e posso encontrá-la na sombra de qualquer árvore, de qualquer país, mas nem sempre ela pode me encontrar. É outro tempo, não marca encontro, espera o sabor dos acontecimentos naturais, do sim, do que está certo, fincado no firmamento, a língua. É desafeito às particularidades das horas civis, é de impossível extinção e vasta memória, floresta: sem fim nem começo, alegria e tristeza do imperecível, eterna folha que impera sobre os machados: a pena.
Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, não é agricultura, latifúndio, medição e contagem: é floresta. Sistema que não se replanta, semente de terra caprichosa e certa, não cresce em solo empreendido sem o tempo, não nasce (nem morre) duas vezes no mesmo lugar. Vive entre o poder e a rebeldia, uma  existência que não aceita construção, engenharia - daí a solidão da noite, escura coragem da escuridão, onde hoje só existem o cio dos sons, memória dos  animais que nunca estiveram a sós, e a incerteza. Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, e não se vê nascer uma floresta, ela já estava lá, imediata.

Assim eu vivi por séculos e séculos, plantada por Deus no seio dos homens, bem como os homens plantados por Deus em meu seio. Até que eu sem bem saber por que, comecei a guardar as sementes, todas as sementes: sem saber por quê. E ao fazer algo novo sem saber o porquê, excitei sem querer a curiosidade do meu povo, que exercitou o medo, que se exercitou. Tive medo também e antes que pudessem me matar, escondi as sementes embaixo da terra o mais rápido que pude, ferida ferindo o chão com minhas mãos e pés,  de repente, sem saber e sem saber como, escondi sementes por todas as partes. Ao fazer algo sem saber por que, excitei sem querer o orgulho do meu povo, que se exercitou, e cegos de medo queimaram todas as árvores que eles sabiam conter sementes. Em mim não tocaram um só dedo, pois antes de tudo eu já estava morta, morta de medo, sem amor, sem floresta. Eu estava morta e pura, pura matéria e quase esquecimento.
Depois de anos de devastação, fome e arrependimento, em que eu estive morta de medo, a terra revelou seu segredo, e as corajosas sementes enterradas despontaram, mudas de solo e tudo veio à luz, visível! A ciência venceu o amor sem saber e sem saber o amor venceu a ciência, meu amor também é agricultura, atualizada nestes tempos, visível, demorada a crescer, mas visível. Oh! E tudo isso fez, de certo, fez meu espírito animado, agressiva a cultura,  e forte a agricultura: às ferramentas, ás máquinas... a partir daquele momento era preciso plantar, ter intenção, regar, optar, medir, planejar, ordenar, direcionar, preparar o solo, escolher entre um milhão de sementes, eu morava num mar sementes, e se responsabilizar, separar, construir, manejar, materializar, empreender e.  Longe do meu coração o amor parece selvagem, percebi, agarrada às ferramentas do escritório, e que toda aquela história estava arraigada em mim, e que mesmo eu sendo civil, por baixo de todos os disfarces, o meu amor é uma floresta, e ainda bem: perto dos corações eu sou selvagem.

Lembrei-me do que estava fazendo aqui, tão resoluta: Depois dos séculos sem perdão, depois de toda ausência, decidi me aproximar das cidades, entrar nos barcos, manusear as ferramentas, usar os talheres, seguir os calendários, toda aquela história está arraigada em mim, dirigir carros, guardar moedas, calçar os sapatos, dobrar os lençóis, ligar os refrigeradores, me assalariar, e todas as manhãs com carinho retiro a terra das minhas unhas, recolho as folhas, gravetos, fezes dos animais, carcaças, carapaças, cascas de árvores, cupins, dentes de tubarão que me escapam do corpo, faço a manutenção do invisível. Cuido a não chorar os mares, a não crescer como os morros, a não morrer, e por isso morro e cuidam de mim as formiguinhas, enquanto eu escrevo o relatório aos meus superiores e aprendo a aceitar.

Há tempo para tudo, me disse a árvore, uma árvore.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Portais







I.
Ele chegou, tocou a campainha, hesitado.
Pousou seu olho no olho mágico até desdobrar as fibras da porta e escutar:
- Ventre, por favor.




II.
A puta que pariu dormia.
- Descansa, é carnaval: eu vou no seu lugar. 




III.
Fui desposada pelo Mar:
Agora tenho marido
e não tenho onde pousar.



IV.
Pensei que te beijava,
mas era concreto.


V.
Na verdade, era uma flor.

Não quis ver despetalar a beleza...
(d)e virar fruto.