Longe do meu coração o amor parece selvagem,
percebi, agarrada às ferramentas.
Perto dos corações selvagens meu amor é uma floresta: Incansável, floresta, longínqua, floresta, vívida, floresta - perigo e vida para além da civilização. Mata rasgada pelo sol, réstias imensas,
trilhas, beira transbordante, um abraço fértil. Longínqua, a que está longe, floresta, intangível, floresta, que vai longe, floresta, além da civilização, além - e
não antes - que este amor é evolução. Perto dos corações selvagens meu amor é
uma floresta, e estendo-me, incontável, para fora dos limites do cotidiano,
fora dos limites do tempo, grande e invisível, fauna e flora transcendentes: sementes
que emperram as engrenagens das máquinas, água de rio sobre os aparelhos
elétricos, a pausa e o sangue no relógio de pulso - parece invenção, mas não é,
olha a folhinha flutuando ali, incrível voo sobre o nada.
Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, sentido
simbólico nos confins do espírito, floresta,
velha, floresta, fresca, floresta – e posso encontrá-la na sombra
de qualquer árvore, de qualquer país, mas nem sempre ela pode me encontrar. É
outro tempo, não marca encontro, espera o sabor dos acontecimentos naturais, do
sim, do que está certo, fincado no firmamento, a língua. É desafeito às particularidades
das horas civis, é de impossível extinção e vasta memória, floresta: sem fim nem começo, alegria e tristeza do imperecível,
eterna folha que impera sobre os machados: a pena.
Perto dos corações selvagens meu amor é floresta, não é
agricultura, latifúndio, medição e contagem: é floresta. Sistema que não se replanta, semente de terra caprichosa
e certa, não cresce em solo empreendido sem o tempo, não nasce (nem morre) duas
vezes no mesmo lugar. Vive entre o poder e a rebeldia, uma existência que não aceita construção, engenharia - daí a solidão da noite, escura coragem da escuridão, onde hoje
só existem o cio dos sons, memória dos
animais que nunca estiveram a sós, e a incerteza. Perto dos
corações selvagens meu amor é floresta, e não se vê nascer uma floresta, ela já
estava lá, imediata.
Assim eu vivi por séculos e séculos, plantada por Deus no
seio dos homens, bem como os homens plantados por Deus em meu seio. Até que eu
sem bem saber por que, comecei a guardar as sementes, todas as sementes: sem
saber por quê. E ao fazer algo novo sem saber o porquê, excitei sem querer a
curiosidade do meu povo, que exercitou o medo, que se exercitou. Tive medo
também e antes que pudessem me matar, escondi as sementes embaixo da terra o
mais rápido que pude, ferida ferindo o chão com minhas mãos e pés, de repente, sem saber e sem saber como, escondi sementes por todas as
partes. Ao fazer algo sem saber por que, excitei sem querer o orgulho do meu povo,
que se exercitou, e cegos de medo queimaram todas as árvores que eles sabiam
conter sementes. Em mim não tocaram um só dedo, pois antes de tudo eu já estava
morta, morta de medo, sem amor, sem floresta. Eu estava morta e pura, pura
matéria e quase esquecimento.
Depois de anos de devastação, fome e arrependimento, em que
eu estive morta de medo, a terra revelou seu segredo, e as corajosas sementes
enterradas despontaram, mudas de solo e tudo veio à luz, visível! A ciência
venceu o amor sem saber e sem saber o amor venceu a ciência, meu amor também é
agricultura, atualizada nestes tempos, visível, demorada a crescer, mas visível.
Oh! E tudo isso fez, de certo, fez meu espírito animado, agressiva a cultura, e forte a agricultura: às ferramentas, ás máquinas... a partir daquele
momento era preciso plantar, ter intenção, regar, optar, medir, planejar,
ordenar, direcionar, preparar o solo, escolher entre um milhão de sementes, eu morava num mar sementes, e se responsabilizar,
separar, construir, manejar, materializar, empreender e. Longe
do meu coração o amor parece selvagem, percebi, agarrada às ferramentas do
escritório, e que toda aquela história
estava arraigada em mim, e que mesmo eu sendo civil, por baixo de todos os
disfarces, o meu amor é uma floresta, e ainda bem: perto dos corações eu sou
selvagem.
Lembrei-me do que estava fazendo aqui, tão resoluta: Depois
dos séculos sem perdão, depois de toda ausência, decidi me aproximar das
cidades, entrar nos barcos, manusear as ferramentas, usar os talheres, seguir
os calendários, toda aquela história está
arraigada em mim, dirigir carros, guardar moedas, calçar os sapatos, dobrar
os lençóis, ligar os refrigeradores, me assalariar, e todas as manhãs com carinho retiro a terra das minhas
unhas, recolho as folhas, gravetos, fezes dos animais, carcaças, carapaças,
cascas de árvores, cupins, dentes de tubarão que me escapam do corpo, faço a manutenção
do invisível. Cuido a não chorar os mares, a não crescer como os morros, a não
morrer, e por isso morro e cuidam de mim as formiguinhas, enquanto eu escrevo o
relatório aos meus superiores e aprendo a aceitar.
Há tempo para tudo, me disse a árvore, uma árvore.